segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

PROMESSA

Decidi fazer uma promessa.

Promessa a sério,
sem desculpas nem desvios,
d’antes quebrar que torcer.

Não, não é nada dessas promessas comuns,
próprias de gente pequena, …
não comer, não beber, não jogar,
dar esmola ao pobre, não faltar à missa,
não dizer palavrão nem ofender o patrão.
Nada disso!

Prometi não morrer.

Sim, não morrer, que é que tem demais?
Há muita gente que não morre!
Não, não é dessa coisa figurativa de Camões,
de se libertar da lei da morte
através de obras e feitos e mais não sei quê!.

A minha é mesmo de ficar vivo!
Falar, escrever, respirar,
Ensinar e aprender os mistérios da lua e do sol,
Beber, comer, contemplar
o céu, a terra e o mar
e ver os filhos crescer
e ensinar os netos a pintar
os primeiros desenhos da mãe e do pai
e adormecer e sonhar e sonhar
e sonhar
e sonhar

Dezembro 2009

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

PESSOA

Teria quatro anos, não mais, o menino,
quando as primeiras letras começaram
a bordejar o seu ainda curto caminho.

Primeiro foi o A, depois o B e depois
logo vieram todas aquelas figurinhas
que, se juntas em determinada ordem
e pronunciadas pelos sons que lhes eram associados,
formavam, quase miraculosamente,
imagens de pessoas e coisas e cores e animais
e tudo o que havia na aldeia e, quem sabe,
talvez na terra inteira e até mais além!

E o menino se apaixonou pelas letras!
E deixou o carrinho de rodas de esferas
e esqueceu o arco e os berlindes e a bola de trapo.
Até os amigos e as brincadeiras de criança
se reduziram nos seus interesses
(que nunca lhe tomaram demasiado tempo,
verdade seja dita e jurada,
pois o menino sempre tinha sido mais de sizo que de riso).

E nunca mais o menino deixou as letras
nem estas o perderam de vista mais que um instante,
e o menino cresceu e leu e escreveu
e escreveu o que mais ninguém tinha escrito
até que se fez grande e se tornou pessoa.

Morreu cedo, o menino, e com ele
morreram todas as pessoas
que com ele, com o menino,
eram a mesma pessoa.
“Se assim aconteceu,
Assim está certo”.

Dezembro 2009

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O VENTO

O vento rodopiava, violento,
p’lo meio da tarde longa de verão.

Trazia calor e areia com cheiro de áfrica,
sugava a seiva vital das árvores
e secava por dentro as cascas dos bichos
e encasulava em solidão as pessoas,
rendendo a terra às espirais de pó.

O vento rodopiava, violento,
p’lo meio da tarde longa de verão.

Acolhido a um barraco de adobe,
boca de palha e olhos parados
fixados para além do nada, o homem,
abraçado aos joelhos como feto sentado,
conjurava as forças dos sonhos passados,
deixava a alma subir ao teto
para olhar o seu corpo-feto sentado no chão.

O vento rodopiava, violento,
p’lo meio da tarde longa de verão.

E o homem esperava, esperava
com a paciência vidente dos que sabem,
com a humildade atávica dos sem-nome,
que as velas do vento amainassem
e devolvessem o tempo aos homens.

Mas o vento rodopiava, violento,
p’lo meio da tarde longa de verão.


Dezembro 2009

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

DESILUDIDO - redondilha maior e rima emparelhada

Tenho andado pensativo,
mesmo quase depressivo.

Então tomei um café
uma cola e um capilé
aqui no tasco da cantina
que m’ atirou a adrenalina
lá p’ra os anéis de Saturno,
o que me tornou taciturno

Conversei com meus botões
e vi que não tinha razões
para tal disposição,
ainda que o coração
quase me saltasse do peito
com tal falta de respeito
que quase me ensandeceu!

O que foi que aconteceu?
Nada, em boa verdade,
pequena futilidade
mas assaz inconveniente
que me irritou profundamente.
Sentia-me jovem, viçoso,
bonitão, bem cheiroso,
quando surge uma criança,
que mora na vizinhança
e me pergunta, sem mal:

- O senhor é o Pai Natal?


Dezembro 2009

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

MEU PAÍS TRISTE

meu país é colo de mulher,
velha e seca.

meu país é oliveira milenar,
oca e estéril.

meu país é bicho cru e vil,
devorador de crias.

meu país é língua morta,
memória de verbo.

meu país é escárnio de cantiga,
fado adiado.

meu país é corpo amortalhado,
esvaído em vida.

oh meu país, pai, oceano!

oh meu país que sou eu!



Novembro 2009

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

BEETHOVEN e ABRUNHOSA

CONTOS CURTOS ALGO SURREALISTAS (12)
BEETHOVEN E ABRUNHOSA
(em 4 andamentos)


ALLEGRO MA NON TROPPO

Beethoven: - Olha lá, oh coiso! Como te chamas?
Abrunhosa: - Abrunhosa, maestro!
Beethoven: - Abrunhosa maestro? Que raio de nome é esse?
Abrunhosa: - Abrunhosa vírgula maestro, maestro!
Beethoven: - Tá pior, agora ainda percebo menos, mas deixa lá, vou-te chamar Abrunhosa, não te importas, pois não?
Abrunhosa: - Preferiria Abrunhosa, maestro…
Beethoven: - Oh Abrunhosa, porque é que não vais …. deixa pra lá!

ANDANTE MOLTO MOSSO

Abrunhosa: - Oh maestro, o senhor é surdo?
Beethoven: - Ahn?
Abrunhosa: - O SENHOR É SURDO?
Beethoven: - Não grites que não sou surdo! E tu, és cego?
Abrunhosa: - Não, maestro. É por causa dos óculos escuros? Está na moda, é para ser cul!
Beethoven: - É para ser o quê? És gay?
Abrunhosa: - Sou cantor, maestro!
Beethoven: - És gay e cantor?
Abrunhosa: - Não, maestro, sou só cantor e sou do Porto. E muito macho!
Beethoven: - Ah, és aquele mocinho simpático que canta o Chico Fininho? Em alemão, nós dizemos Kiko Mager!
Abrunhosa: - Oh maestro! O senhor é amigo do dr. Alzheimer, não é?

ALLEGRO

Beethoven: - Tocas piano, oh Veloso?
Abrunhosa: - Sou Abrunhosa, maestro! E toco, maestro.
Beethoven: - Perguntei se tocavas piano!
Abrunhosa: - Toco piano, Maestro!
Beethoven: - Então toca aí … hummmm … a pastoral!
Abrunhosa: - Essa não conheço, Maestro, mas posso tocar o samba de uma nota só!
Beethoven: - Uma nota só? Não será pouco? Mas está bem, então vamu lá!
(3 notas, sempre a mesma, depois)
Beethoven: - Oh Veloso!
Abrunhosa: - É Abrunhosa, porra, Maestro!
Beethoven: - Como? Está bem, não precisas de ser grosso! Olha lá, não tens outra nota?
Abrunhosa: - Eu não, Maestro, mas posso perguntar ao Tom!
Beethoven: - Perguntar ao tom pela nota? Oh Veloso, já estás morto e ninguém te disse?

ALLEGRETTO

Abrunhosa: - Oh Maestro, posso cantar-lhe uma música da minha autoria?
Beethoven: - Tás louco? Nem penses!
Abrunhosa: - Obrigado, Maestro, então eu canto! É uma coisinha modesta mas, não desfazendo nas sinfonias ou lá o que é que o Maestro faz, teve grande sucesso! Até o Caetano Veloso quis cantar comigo!
Beethoven (em surdina): - Olha que outro!
Abrunhosa: - Diga, Maestro?
Beethoven: - Nada, nada, canta lá! (em surdina – Ainda bem que sou surdo!)
Abrunhosa: - Então é assim!
(Abrunhosa canta, Beethoven aproveita e limpa o nariz)
“Eu não sei, Que mais posso ser,
Um dia rei, Outro dia sem comer.
Por vezes forte, Coragem de leão,
às vezes fraco, Assim é o coração.
Eu não sei, Que mais te posso dar,
Um dia jóias, Noutro dia o luar.
Gritos de dor, Gritos de prazer,
Que um homem também chora,
Etc etc”
Beethoven: - Oh Abrunhosa!
Abrunhosa: - Sim, Maestro?
Beethoven: - Tá bom, tá bom, podes parar! Tens uma voz invulgar, quase erbrechenschafe! E o poema …. sim senhor! Nem sei o que diga!
Abrunhosa: - Oh Maestro, como estou feliz!
Beethoven: - Olha, já agora, porque é que não compras um bilhete só de ida para o Tibete?

(Cai o pano, envergonhado)


Novembro 2009

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

ÓRGÃOS FALANTES - FÁBULA FULMINANTE EM 3 ATOS

1º ATO

Miocárdio: - Oh homem, pára de pensar!
Neurónio: - Não consigo, está na minha natureza. E tu, estás bem?
Miocárdio: - Olha, nem sei, ando aqui com uma pontada, assim … uma sensação de ansiedade… e depois eu emociono-me muito, qualquer coisa me deixa a chorar, parece que tenho o coração ao pé da boca!
Neurónio: - Deve ser do tempo, também tenho uma dor de cabeça que não me deixa há três dias! Eu é ao contrário, penso demais…. passo o tempo a remoer, a remoer, faço contas, confiro tudo, procuro a lógica, e depois… às vezes não decido nada!
Miocárdio: - Não penses mais nisso! Gostei de te ver, e abraços aos irmãos todos!
Neurónio: - Serão entregues! E tu, amigo do peito, … tem cuidado com as gorduras, se não …

2º ATO

Estômago: - Ainda bem que te encontro! Ando há uns dias a tentar falar-te, mas não tenho passado muito bem, esta sensação permanente de enfartado dá cá uma disposição horrível! Devo ter comido alguma coisa que não me assentou bem, e depois os gases…
Intestino: - Pois é, também te queria falar! E precisamente por causa dos gases! Olha lá, tem paciência, fazes-me passar cada má figura! Vê lá se tens cuidado com o que comes e, já agora, com o que bebes!
Estômago: - Tens razão! Sei que tenho vindo a abusar. Os amigos lá de cima já se queixaram que as canalizações andam a ficar entupidas. O meu problema é a carne vermelha e a pinga! E os doces, meu deus, e os doces …
Intestino: - Está bem, pronto, deixa lá, mas tem cuidado contigo! E não te esqueças que quem se lixa sou eu, que ando sempre para aqui cheio que nem um odre! E agora desculpa que tenho que ir ali fazer um servicinho a correr!

3º ATO E EPÍLOGO DRAMÁTICO

Neurónio: - Eu bem gostaria de entender! Tantas, mas tantas vezes que o avisei que não podia comer daquela maneira e ele …. nada, não ligava nenhuma! Pois que sim, pois que também, mas nada!
Intestino: - Sabes o que te digo? Cá por mim foi um alívio!
Neurónio: - Também é verdade, eu não pensava noutra coisa!
Miocárdio: - Nem mais! Enfartei-me de vez!

FIM

sábado, 21 de novembro de 2009

OH VARA (Cantiga de Escárnio e Maldizer)

A cada facho o seu tacho,
a cada pé seu capacho!
Oh Vara!

A cada idiota um penacho.
Só podes estar borracho!
Oh Vara!

Que falta de coração
e de vergonha na cara!
Oh Vara!

És um democrata-cristão
Que não saiu do armário
Oh Vara

Dizes que és socialista
E não conheces o abecedário
Oh Vara

Ganhas salário de nobre
Mas choras de pena p’lo pobre
Oh Vara

Já chega de seres bandalho,
olh’ó teu cabelo grisalho!
Oh Vara, vai p’ró ..…. trabalho!


Novembro 2009

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

LINHAS E ENTRELINHAS

As entrelinhas são verdades
de que as linhas se envergonham.

Nas linhas se arruma, aprumada,
a mentira, arrogante e descarada.

Entrelinhas se esconde, discreta,
modesta e frágil, a verdade.

Porque não escrevemos direito,
do princípio ao fim, numa linha?

Dizem que até os deuses
escrevem por linhas tortas, e são deuses!
Porque não podemos nós?

Direitas ou tortas, as linhas
são metafóricas formas
em que a falácia se enfeita
de colorida ambiguidade
de que logo alguns se aproveitam
e se apropriam da verdade

Pode, ainda, acontecer,
numa ou noutra ocasião,
que as linhas falem verdade,
aumentando a confusão!
Neste caso, inversamente,
são mentira, as entrelinhas?

Cá por mim, alinho as linhas
Sem ponto-de-cruz ou bordado!
Não! é não! não é talvez,
Nem o sim pode ser nim!
Dois mais dois não é três!

só se for nas entrelinhas!)


Novembro 2009

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O PERCURSO

O percurso,
que parece longo e extenuante,
não dura mais que um bater de asas de libelinha.

Nascemos
e logo crescemos, correndo
para uma vida que não pedimos nem agradecemos.

Vivemos
e queremos tudo hoje, às mãos cheias,
que o amanhã é futuro pretérito e o tempo não se conta.

Distraídos,
o corpo vai amadurando, como fruta
que quer voltar à terra, a saudade da terra vai crescendo.

Atentamos,
de repente, que o caminho se encurta
e os olhos baços se confundem nos passos trôpegos.

Esquecemos
o que somos e vivemos o que fomos
em flashbacks recorrentes que antecipam a despedida.

Morremos
sem um adeus à vida que não pedimos.



Novembro 2009

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

SAUDADE (em rima emparelhada)

Saudade é sentimento merdoso,
seja indefinido e nebuloso
ou de coisa ou coiso concreto,
um bolo de creme, um afeto
ou um amor que em tempo tive
mas que hoje apenas vive
nos arquivos da memória.

É melhor deixar a história
p’ra quem gosta de sofrer,
que eu gosto mais de viver
o dia que vai correndo,
nunca ficar remoendo
nos tempos que já passaram.

Olhem as mulheres que me amaram,
e que foram mais de vinte!
Esqueceram-me no dia seguinte!

Já saudade do futuro, isso sim!
Como história em folhetim,
vou aos poucos descobrindo,
ora chorando, ora rindo,
o que me vai trazendo a sorte!
Vida para além da morte?
Nem pensar!
Acordar a respirar
é a minha maior ambição!

Ter esperança que o coração
não se apague como vela,
e o melhor é ter cautela,
não abusar da cerveja
e manter distante a igreja.
Saudade é sentimento merdoso.

Novembro 2009

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O LADO ALADO

gosto mais do meu lado alado
que do meu lado terreno

o meu lado alado
liberta o que de mais eu há em mim
quebra as formas contentoras
que reduzem as fronteiras da criação
e dilui as manchas tribais
que maculam o verbo essencial

o meu lado terreno
carrega trela e açaimo
move-se com passos medidos e comedidos
expressando apenas o expectável
por trilha formalmente correta
em cenário de papier-maché colorido.


Novembro 2009

O MURO

logo mais
por volta da meia noite
hora dos espíritos imortais
espero que a sombra me acoite
dos amores e desamores

é tempo de decisões
vou saltar o muro
e vou fugir

não sei de quê nem de quem
nem porquê
nem para quê ou para quem
mas vou saltar o muro
e fugir

amanhã serei ícaro
mas não como ele
tartufo e pícaro
não despirei os grilhões
do traje executivo
apenas preciso ganhar altura suficiente
para passar acima
das grades hierárquicas
das convenções e vilões
que me tolhem os movimentos metafóricos

são os grunhidos dos porcos orwellianos
que roncam mais forte
que as débeis vozes dos homens
e me cortam o sono aos pedaços
entretenho a insónia
catando as lêndeas dos piolhos
que me enchem a cabeça por dentro
numa comichão impossível

imitei pessoa
fui à janela e vi que o dia já era

personifiquei pessoa
e fui à tabacaria
comprar o jornal de amanhã
para conferir a necrologia
mas infelizmente nada constava


Novembro 2009

A BORBOLETA - estória infantil ou..

I
Podia ter sido um gato,
mas não era.
Era uma borboleta que gostaria de ter sido um gato,
mas não era.
Mesmo assim, miava com altivez,
afiava as unha nas pétalas da flores,
marcava território com o pó das suas asas
e perdia-se por uma suculenta cabeça de peixe.
Desdenhava sobranceiramente a função
polinizadora que a natureza lhe cometeu.
Preferia vagar com displicência felina
pelos quintais dos vizinhos.
Gostava de música suave, naturalmente,
nada de punks ou metals históricos ou alternativos
que lhe eriçavam os bigodes-antenas.

II
Corria-lhe a vida assim … como dizer ,
sem grandes sobressaltos,
ora mais felínica
ora mais borbolética,
mas não era feliz,
a borboleta,
faltava alguma coisa na sua vida.
Ultimamente dava por si,
entre um voo e um salto,
sentada sobre os quartos traseiros
olhando a lua.
Sentia que a alma gémea,
aquilo de que falam os poetas
que nunca se apaixonaram,
não tinha aparecido.

III
Até que certo dia,
um dia igual aos outros,
por pouco não chocou em pleno voo
com uma ave de respeitável porte!
Bico algo adunco,
plumagem de tons marron-cinza,
postura autoritária mas insinuante.
Poderia ser milhafre ou falcão,
não sei, mas certamente predadora.
Apresentou-se de forma civilizada
como sendo um pombo.
Pombo, filho de pombo e neto de pombo.

IV
Sem estrelas explodindo nem o chão estremecendo,
conversa puxou conversa,
gostos dos mesmos gostos
mais almoço menos jantar,
alguma coisa começava a surgir.
O pombo dizia que trabalhava num pombal,
era chefe por sinal,
e decidiram juntar os destinos,
a borboleta e o pombo
(ou milhafre ou lá o que era).

V
Algum tempo passou,
dias melhores dias piores,
tropeção de um lado,
empurrão do outro,
e o pombo cada vez se afirmava mais milhafre.
Cada dia rasgava um pouco das asas da borboleta
e cortava-lhe com rigor as unhas rente,
obliterando decididamente as memórias
que restavam do felino que em tempos
habitou na borboleta.

VI
Até que o milhafre,
agora bem assumido,
proibiu terminantemente a borboleta de voar.
(agora, digam-me os leitores,
como se pode proibir uma borboleta de voar?)

VII
A pobre borboleta definhava, definhava,
mais parecia uma larva.
Certo dia de total desespero
em que a borboleta pensava,
entre triste e revoltada,
no seu triste destino,

Final A
viu pousar na beirada da janela
uma borboleta dourada
que lhe disse:
“Voa, borboleta, voa
que o sol espera por ti!”

Final B
viu assomar à beirada da janela
um belo gato dourado
que lhe disse:
“Foge, borboleta, foge,
que o mundo espera por ti!”



Novembro 2009

PERDÃO

quando me traem
quando me trocam
quando me mentem
ou me vendem
eu perdoo

se me injustiçam
se me roubam
se me insultam
ou me renegam
eu perdoo


eu perdoo
não por bondade
não por fraqueza
não por humildade
ou por complacência

eu perdoo
porque me azeda a alma
porque me mata a crença
porque me torna cético
………………………..
e posso enfim ser humano.


Outubro 2009

TREMA

“Basta!”, grita o verbo,
que é da norma ser princípio,
secundado pelo substantivo
arranhando a tónica vogal;

“Basta de humilhação”,
disse, tremendo, o ponto final!”;

“Basta!”, esganiça-se a vírgula,
apoiada de imediato
pelo ponto de exclamação;

“Nunca!”, acentuam o til,
o acento circunflexo
e demais acentuação.

todas as outras formas,
mais de mil,
gramaticais, contextuais,
levantam-se de supetão e
sublinham em coro afinado,
dois pontos:
“os tremas são nossos irmãos,
herança do portuguez de antanho,
medieval!”

não se usa, bem se sabe,
há cem anos, em portugal.
mas que no brasil não acabe,
nem no próximo milênio!
Oh que saudade já tenho
Da bela palavra qüinqüênio!

NEGRA

era feia, aquela mulher negra
era feia

a tez que fora sedosa ao toque
era negra cinza e baça

os lábios volumosos e sanguíneos
rompiam da face como ferida
cicatrizada de fresco

os olhos negros
diamantes de pobre
nadavam na baía de água pútrida
em tempo verde
que a malária amarelou

o nariz alargava-se na face
e abria-se em duas fossas largas
fontes de muco
que corria por entre os seios decadentes
que os novos patrões
mandavam esconder
com capulanas de cimento

da barriga desmesurada
rasgada pelos crânios de crianças
paridas de muitos pais
caía o pano negro rubro
até aos pés cascudos e gretados

chama-se luanda,
aquela mulher negra

Outubro 2009

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

NADA

Nada
Contra a minha vontade
Nada
Contém o desgosto de ter tudo
A saga de ter muito
Para no final
Não ter nada
Para ser
Tudo o que não posso ser
Ou não quero
Ser nada contra evidências
Ou meras parecenças
Do que poderia ser tudo
Não importa o que é
Só interessa o que tem
Mesmo que não tenha nada
Mas pareça que tem

Nada
Contra a minha vontade
Nada
Que me impeça de partir
Quando já não tiver nada
Ou pior
Quando tiver tudo

Nada
Contra a minha vontade
Nada
Que me faça pensar
E decidir por tudo e por nada.

MUDANÇA

as pessoas acomodam-se,
vestem os hábitos do hábito,
marcam territórios,
desenham rituais e definem rotinas
que as confinam às suas gaiolas paroquiais
que as protegem da mudança.

a mudança que acende revoluções,
que troça das celebrações dominicais,
que abala os atávicos medos,
que abre brechas nas muralhas da certeza
tão absoluta quanto efémera,
que abana os bastiões da mesmice
dos horizontes conhecidos,
que rasga as convenientes tradições,
………………..
é uma maçada!

mudar para quê, pergunto!
como o outro … o heliocentrista
que lhe valeu a fogueira!
alguma coisa mudou? o sol ficou onde estava
e a terra continuou a rodar, impávida.

para bem da humanidade, pois então!
…alguns dizem de voz grossa, convencida!
para que acabem as guerras
e as crianças não morram crianças
e os pobres deixem de o ser antes do céu prometido
e que a rua não seja a casa de quem não tem casa
e que toda a gente tenha pão
ainda que só uma vez ao dia…

afinal, … era mesmo o que eu dizia
mudar é uma maçada!

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

MANSO

Não me canso
de dançar em passo de ganso.

Nem de cantar o amor
em voz de tenor.

O que não quero é ser manso,
ser bovino que não sabe a força que tem.

Não quero ficar aquém
das promessas que me fiz
de nunca baixar a cabeça.

Seja o que for que aconteça,
recusarei ser igual!

Quero deixar meu sinal
no caminho que fizer,
seja um verso,
seja um filho,
seja um adeus de mulher.

Jamais usar quaisquer véus,
que me apouquem
e escondam a condição
mesmo que alguém me garanta
entrada no reino dos céus.


Agosto 2009

segunda-feira, 29 de junho de 2009

RIMA-PADRÃO

I
Não fora a terminação
seria uma boa palavra, padrão.

Rima com facilidade
nem requer habilidade
para jogar com palavrão.

Virá de padre, suponho,
ou talvez não passe de sonho
ou de normalização.

Vejamos a etimologia...
ou melhor, a alegoria:

II
Diogo Cão, no Bojador,
diz a lusa historiografia,
que passou além da dor
e deixou padrão quando queria
ser da Índia conquistador,
buscando a especiaria
e provando ao Rei seu valor.

III
Na estatística , o padrão,
é medida de dispersão,
se for desvio é raiz
quadrada da variância;
se do total da população
dá pelo nome de sigma,
esquisita substância
que parece ser um estigma
de quem não sabe o que diz.

IV
Na ciência é paradigma,
filosófica referência
da razão pura, o exemplo
de Salomão e do templo
dos vendilhões, da ganância,
que Cristo, sem relutância,
expulsou à bofetada,
definindo o padrão da verdade
para a longa caminhada
dos homens de boa vontade.

V
Na vida do homem de bem,
o padrão é um farol,
como a estrela de belém,
assim uma espécie de sol
percursor do gps,
leva-me sempre a bom porto
ainda que eu já estivesse
gelado, duro e bem morto.


Junho 2009

domingo, 21 de junho de 2009

ACOSSADO

acomete-me por vezes uma estranha sensação
de que alguém ou alguma coisa me quer
empurrar para um canto,
limitar-me o espaço,
apequenar-me à condição doméstica
de coisa que é d’outrem,
travar-me a fala e o pensamento,
condicionar-me a memória.

sustenho a revolta
e deixo-me empurrar
e sujeito-me,
quase de bom grado,
quase grato,
ao conforto do canto,
à comodidade de bicho de companhia

mas logo me sobe ao peito
uma dor de raiva contida
de animal acossado
que morde e rasga a mão do carcereiro,
pois mesmo um rato ganha dentes de lobo
quando nem rato o deixam ser

acordo sempre com a boca seca.


Junho 2009

sexta-feira, 12 de junho de 2009

NAS TULHERIAS COM CHICO BUARQUE

Já bem entrado era Agosto,
em passeio p’las tulherias,
o cheiro de flores e de mosto,
as crianças em correrias
até me engelhava o rosto
e alegrava o coração
e o cérebro, em comunhão.

Eis que encontrei o descartes
mais o chico da holanda
teclando com mozart
sem deixar passar a banda
que vinha do campo de marte
em animada conversa
sentados num tapete persa.

Empunhava o chico, viril,
uma enorme clave de sol,
como um símbolo do Brasil,
e gritava:

- “Eu sou o farol
do presidente operário fabril!
Sou o retrato em branco e preto,
da ópera do malandro, o libreto!”

- “Alto aí”, berra mozart, sustenido,
“que de óperas bem sei eu!
seja malandro ou bandido,
congressista ou filisteu,
ninguém merece apelido
de cefalópode molusco!

Ouve-se a voz cartesiana:
- “Verborreico e vermelhusco,
será, mas parem com essa chicana!
Há que atentar no percurso
da usina p’rá selva urbana!
Mudou com método o discurso
exaltado do sindicato,
e aprendeu economês!
mas tremei, oh povo ingrato,
Vão tê-lo lá outra vez!”


Abril 2009

quinta-feira, 11 de junho de 2009

SONETO EM MIM

Falar de quem? Pois... de mim!
Homem! Macho! Inteligente!
Senhor de brilhante mente,
Um poço d’encantos, enfim!

Trato as mulheres com desdém,
De boa figura, escorreito,
(mas trago um desgosto no peito,
tive que nascer d’uma mãe!)

Que perfeito ninguém é!
(conto seis dedos na mão
e não gosto de café!).

Tenho contudo um senão,
Não faço xixi de pé!
Oh meus deus! Qu’imperfeição!


Janeiro 2009

ROSAS CARMIM

rosas de cor,
versos quebrados,
sonhos alados,
botões em flor,
vidas cansadas em busca de amor.

versos quebrados
ligados por pouco,
razões de louco,
caminhos mudados,
vidas cansadas com rumos trocados.

sonhos alados,
desejo profundo
apertando o mundo,
crescem cuidados,
vidas cansadas com rumos trocados.

botões em flor,
princípio do fim,
rosas carmim,
sol sem calor,
vidas cansadas em busca de amor.


Janeiro 2009

MUDANÇA

um de nós tem que mudar

não para deixar de ser quem é
nem por missão ou omissão
nem por sacrifício
romântico altruísmo
ou pura abnegação

mas por amor

mesmo que a mudança
possa matar esse amor


Novembro 2008

quarta-feira, 10 de junho de 2009

OS LIVROS DA MINHA INFÂNCIA

as marcas sépias do tempo
nos livros da minha infância
são como luzes que se perdem
na distância do navio que se liberta do cais

os livros da minha infância
guardam sonhos de terras distantes,
de cavaleiros andantes
e poetas, jograis, cancioneiros,
de princesas e marinheiros
das barcas vicentinas
que dobravam bojadores,
e frades de negras batinas.

as marcas sépias do tempo
nos livros da minha infância
são o espelho das rugas
que desenham no meu rosto
os caminhos que percorri
desde que os li,

os livros da minha infância


Junho 2009

segunda-feira, 8 de junho de 2009

OS NOVOS HERÓIS

Chego
fechado na coragem do medo.

Construo
uma cerca de tradições.

Ergo
um muro de confusões.

Moro
n’ aldeia em plena cidade.

Gasto
a vida em terras alheias
de estranhos costumes
onde altos tapumes
escondem cadeias.

Emigro, imigro,
sonhos de estar e voltar.

Procuro
os amigos da terra
que a terra partilha
na solidão amarga
dispersa no nada.

Vem
gente do mar, gente da serra
gente das ilhas da maldição.

Troco
a saudade do nada que tinha,
mas sabia quem era!

Busco
o haver e esqueço o dever
de ser o que sou,
falsa quimera!

Perco-me
no meio, não sei onde estou.


Janeiro 2009

sexta-feira, 5 de junho de 2009

QUADRAS POPULARES ACERCA DE NADA

quando quero dizer nada
acabo dizendo tudo
o melhor é ficar mudo
manter a boca fechada

manter a boca fechada
tapa a porta à verborreia
previne a mental diarreia
impede à mosca a entrada

impede à mosca a entrada
e a outros bichos que tais
não dizer menos ou mais
quando quero dizer nada

quando quero dizer nada
é melhor ouvir que falar
baralhar, tornar a dar
manter a boca fechada

manter a boca fechada
para não fazer asneira
porque nem de brincadeira
devo dizer mais que nada



Março 2009

CONFIDÊNCIA

vou-vos contar um segredo

por vezes
poucas vezes
permito-me ter pena de mim

isso mesmo
ter pena de mim
lavar-me nas minhas lágrimas
curtir alguma mágoas
saborear um momento de infelicidade
lamber as próprias feridas
debochar na complacência

é um exercício perigoso
tal como uma droga
cria habituação e
se deixada sem controlo
ou se ultrapassada a prescrição
suga-nos para buracos negros
de gozo irresistível

ah, mas há lá prazer mais elevado
que rir de nós próprios

melhor que ter pena de mim
só o momento
aquele momento
em que me arrimo
em que me ganho
e grito ... basta!



Março 2009

A BARATA OCASIONAL

era um apartamento comum
daqueles a que nunca pertencemos
apenas por lá passamos
numa rua de qualquer nome
que desaguava na avenida do mar

edifício de esquina
belo e decadente
prenhe de história
qual velha senhora de rosto marcado
pelo tempo que esgaça
e descolora as baínhas
dos vestidos que se vestem e revestem

quarto sala e kitchenette
esgotavam o espaço útil

janela rasgada ao chão
debruçada para saguão comunal
trazia vozes e cânticos e choros
de pessoas de muitas falas e cores.

e as baratas
as baratas rodando as antenas nervosas
e a sua procura incessante
por recantos húmidos e poeirentos

não era a ocasional barata doméstica
eram filas de famílias de baratas
em contínuo e noturno movimento
sem metamorfoses kafkianas
eram apenas nojentas baratas
francesas de Nice.


Março 2009

O MONSTRO

Os pensamentos enleiam-se,
por vezes,
e procriam e crescem à volta do que foi,
no início,
um assomo singelo de ideia,
tão simples,
que quase não merece o nome
de ideia.

De uma ideia que era apenas isso,
uma sombra,
d’ ínfimo ponto flutuante no espaço
sináptico,
nasce e expande-se um monstro
emocional,
que nos rasga todos os resquícios
de sentido.

Por geométrico processo de agregação,
irracional,
e em tempo tão pouco que não tem medida
no tempo,
ocupa todo o nosso espaço vital,
abusivo,
e logo nos possui e manipula,
destruidor.

Num brutal espasmo de raiva
atávica,
olhos cegos e coração vazio
por desamor
distorce e conspurca o princípio
essencial
E morre no pântano frio
da solidão.


Março 2009

quinta-feira, 4 de junho de 2009

MELODRAMA MUSICAL

Maria: Lembras-te? Esta era a nossa música!

João: Lembro-me muito bem, como se fosse hoje!

Maria: Aqui para nós, aquilo é um tudo nada piegas,
não te parece?

João: Sim, realmente, ouvindo melhor,
é uma grande pepineira!

Maria: Pepineira também não diria,
um pouco piegas, pronto.

João: Isso dizes tu porque é aquele espanholito enjoado!

Maria: Espanholito enjoado? Romântico, é o que é!
E latino, não espanholito!

João: Sim, sim, gostaria de ver o que dirias
se fosse uma gaja bonita que cantasse!

Maria: E que não viessem os ciúmes à conversa!
Quero lá saber do Julio para alguma coisa.
Por acaso até é giro,
o homem, faz-me pensar em coisas boas!

João: Bem, a conversa já se está a estragar!
Vamos mudar de assunto.
Como é que estás com o teu novo marido, estás feliz?
Mais do que comigo?

Maria: Se estou feliz?
Olha, João, nem sei bem,
sabes que isso da felicidade é muito relativo.....
estou calma, isso sim, e eu precisava de calma.

João: Sim, mas mais feliz do que comigo?

Maria: Não insistas, João, é diferente,
por ti tive paixão, pelo Filipe tenho amor.
E, na minha idade, preciso mais de amor que de paixão.

João: Pronto,já entendi.
Mas diz-me só mais uma coisa:
já tens uma nova música?


Fevereiro 2009

RENASCER

era uma vez....
uma vez em que me veio,
irresistível,
uma vontade de me deitar,
como fazem os velhos,
era sábado
e o dia mal ia a meio.

senti, por inexplicável razão,
que o dia tinha acabado,
que tudo tinha acabado,
como se tivesse chegado ao fim de um livro.

uma estranha lassidão,
quase dormência,
dominava-me os movimentos.

os sons chegavam-me abafados
e até um repentino e irreal nevoeiro
caiu, intempestivo, sobre a cidade.

todo eu me queria abandonar ao estranho apelo

seria isto a antecâmara da morte?
assim uma espécie de anestesia?

mas eu não quero morrer!
gritou alguém... alguma coisa,
dentro de mim!

quero apenas mudar!
ou terei de morrer para mudar?

morrerei, então, para renascer.



Fevereiro 2009

MELODRAMA MULTICULTURAL

O homem que bateu no cão
que mordeu no gato
que comeu o rato
que roubou o queijo
do Manuel que não faz parte desta história.
.......

Assim mesmo, como em Drummond,
Começa o melodrama.


Maria: João, estou farta! Vou-te deixar!

João: Outra vez essa conversa? Podes começar a andar!

Maria: Oh João, é que não és tu, é o outro....

João: O outro? Qual outro?

Maria: O outro João, que és tu, às vezes!

João: Pronto! Agora é que estragaste tudo!
Tu tens outro homem? Outro João?

Maria: Arre! João, que além de careca és estúpido!

João: Deixa lá a minha careca,
se não começo a falar das tuas varizes!

Maria: Das minhas varizes?
Ah agora já não gostas!
Mas quando me quiseste levar p’ra cama
dizias que as minhas varizinhas
até pareciam o mapa hidrográfico do Brasil!
Nunca percebi isso,
mas achei que devia ser coisa bonita,
tu falas tanto das mulheres do Brasil!

João: Mulheres do Brasil?
Eu nem conheço nenhuma brasileira!
Bem, com a exceção da Creuza,
que me faz as unhas no barbeiro...
mas essa já é mais portuguesa que tu,
até canta o fado...

Maria: A Creuza canta o fado no barbeiro?
Explica lá isso bem explicadinho, Joãozinho!

João: Bem.... no barbeiro não,
canta é no bar do Petrecheque,
aquele meu colega ucraniano da construção
que te apresentei há dias.
Eu disse-te que ele explorava um centro cultural,
onde aos sábados à noite fazemos reuniões de trabalho.
Não tem nada de mal a Creuza animar as reuniões!

Maria: Creuza? Olha meu querido,
a Creuza durante a semana chama-se Joaquim,
é padeiro e vem-me trazer o pão todos os dias
depois de tu saíres p’ró trabalho!

João: A Creuza é o padeiro?
Bem, bem, bem ....oh Maria,
agora és tu que tens que explicar isso bem explicadinho!

.......................................

O melodrama continuou mais ou menos nestes termos
por cerca de 8 horas,
até o Joaquim/Creuza bater à porta
trazendo três baguettes frescas de tamanho respeitável
e dois brioches,
acompanhado/a do/a Petrecheque que,
aliás, também era Karina.
João e Maria, exaustos, confundidos e esfomeados,
não tendo já a menor ideia
de como teriam começado a discutir
nem de qual era afinal o tema da conversa,
decidiram tomar o pequeno almoço todos juntos,
refeição esta que se prolongou até às 5 da tarde.


Fevereiro 2009

O CLONE

pensei, pensei e cheguei à conclusão
que sou um clone da minha pessoa

porque é que se levantou a questão?

a resposta é tão simples que pode soar
a perturbação mental de quem não tem
outra coisa que fazer se não pensar.

não me lembro de ser criança!

por estranho que pareça,
sinto que nasci,
melhor dizendo, apareci,
com memórias implantadas e não vividas.

tive mãe, tive pai, disso recordo,
mas não me lembro, por exemplo,
de brinquedos ou de um beijo na face,
nem de ser castigado por infantis desacatos.

de certeza!

fui clonado de outro eu original!

mas então....
tem que haver outro eu!

ou será que sou eu o principal?



Janeiro 2009

A TERCEIRA VEZ QUE NASCI

a terceira vez que nasci

saí da barriga de um avião
a 10.000 metros de altitude
algures entre o velho e o novo mundo
no ano sem graça de 1988

como certos animais
o meu primeiro alimento
foi a gordura acumulada
durante os percalços
da minha vida anterior

nasci por obra e graça de mim próprio
sem mãe nem pai
nem berço nem láctea teta

as dores de parto prolongaram-se
durante a viagem,
discretas, silenciosas
não teve águas derramadas
nem cordão umbilical,
cortado rente à saída de lisboa.

após a aterragem
saí do aeroporto já pelo meu pé
e, qual tartaruga de ovo recém quebrado,
procurei o mar



ainda não voltei a nascer


Abril 2009

A SEGUNDA VEZ QUE NASCI

a segunda vez que nasci

corria o ano de sessenta e nove
e o mês era fevereiro,
por sinal o mais curto
do calendário gregoriano

talvez por desígnio papal,
aí pelos oito meses de criação
chegou-me uma ânsia ao peito fetal
e ala que se faz tarde,
decidi irromper do maternal útero
e assumir-me como gente.

desta vez nasci menina.

a minha pressa de nascer
era já sintoma genético
do que viria a ser
a minha forma de viver
sempre com pressa.

teria dois quilos de peso,
um pouco mais, talvez
mas uma fome gigante
que a cada par de horas
me fazia berrar
como se me estivessem a matar.

minha mãe sofreu, calculo,
nem um dia,
nem uma noite de descanso
meses atrás de meses
mas, afinal, ser mãe deve ser isso,
ser tudo ... ser mãe

e o meu pai?
agora que falei nisto
eu devia ter um pai
toda a gente tem um pai
não me recordo de o ter visto


a terceira vez que nasci .....


Março 2009

POEMA INACABADO

Queria escrever um poema inacabado.

Por razão nenhuma,
apenas para não ter que o acabar.

Começar é fácil!

Qualquer ideia,
qualquer palavra,
qualquer assomo de sentimento
ou relance introspectivo,
acorda a inspiração
e abre o fluxo criativo.

Depois ....
depois é como esculpir a pedra bruta.

Desenha a ideia global,
Deixa correr a pena,
Tira daqui,
Lasca d’ali.
Raspa acolá e pronto,
vamos aos acabamentos.

A métrica não acerta,
o ritmo está frouxo,
a mensagem não está lá,
ou está demais!
Ah, coisas de somenos!

Teremos todo o poema
e todo o tempo do mundo
para emendar,
cortar,
alterar,
remendar.

Agora faltaria terminar,
Se não fosse um poema inacabado.


Novembro 2008

SONETO DOCE

Goiabada, Rabanada,
Bola que é de Berlim,
Pastel de Belém e Quindim,
Arroz Doce e Tigelada

Bomba, Trufa, Camafeu,
Queijo com Marmelada,
Pão-de-Rala, Bananada,
E mais um Toucinho do Céu.

Fidalgo qu’é Dom Rodrigo,
Pão-de-Ló e Coscurão,
Baba de Camelo e Formigo.

Papos d’Anjo, Massapão,
Moscatel com Doce de Figo,
E uma Torta de Azeitão.


Novembro 2008

CONFESSION

I accuse irresponsibly,
I judge unwillingly,
I condemn unknowingly,
I execute blindlessly.

I live soullessly.



Outubro 2008

CLASSIFICADOS

Homem, aluga-se
pela melhor oferta.

Boa condição geral
devidamente certificada,
o cérebro em particular
usado com parcimónia.

Maduro quanto baste,
boa figura e fino trato,
especialmente treinado
para substituir marido
de menores atributos
em reuniões sociais ou de negócios.

Mestre em acupunctura
e pós-graduado em cultura Maya,
preparado para intervir
em temas de cariz
cultural ou científico,
ou para oferecer apenas
sorriso inteligente,
à vez misterioso e complacente.

Possui competências técnicas
nas áreas prosaicas do lar,
canaliza e electrifica,
pendura quadros e cortinas,
aspira, engoma, passaja.

Diploma de chef cuisinier,
prepara cocktails e sugere menus,
propõe vinhos e recebe convidados.

Procura casa compatível,
de famílias tradicionais,
sem filhos, se possível,
nem domésticos animais.


Outubro 2008

PROIBIDO SABER LER

Que bom o tempo em que só os monges,
alguns,
sabiam ler e escrever!

Aí sim,
o povo ignorante servia os berços-d’ouro,
morria nas suas guerras imperialistas
ou pseudo-religiosas
abençOadas pelos Papas
com promessas de graça eterna.

Pelo Natal e aniversários reais,
o senhor matava o porco
e oferecia à plebe as melhores partes,
patas e cabeças.

quando,
um aqui outro acolá,
o povo foi aprendendo as letras,
os problemas começaram
e a História reescreveu-se.

As populações organizaram-se,
reclamaram direitos,
cortaram uma ou outra cabeça coroada,
escreveram leis e,
oh tragédia,
perceberam que unidos seriam imbatíveis.

O caos instalou-se,
o mundo quase acabou!

Conceitos e práticas perigosas,
criminosas mesmo,
surgiram de mentes doentias,
como república,
democracia,
igualdade de oportunidades,
direito à educação,
entre outras patologias.

Abaixo os falsos deuses da cultura!

Acima o poder divino dos iluminados bem-nascidos!


Dezembro 2007

CONSUMISMO NATALINO

Consumismo é uma forma de cozer as frustrações
em banho-maria,
assim uma espécie de ansiolítico.

E enquanto nos dedicamos,
furiosamente,
a empenhar o futuro,
cumprimos carneiramente o presente.


Além disso,
ainda me incomoda mais o Natal
porque sou um guloso compulsivo.

Não há fatias douradas
nem coscurões
nem bolo-rei
nem filhós
nem arroz doce que me satisfaçam.

Mas as crianças ficam felizes
com as metralhadoras chinesas,
os tambores chineses,
os pianos eléctricos chineses
e os jogos de computador
"quanto mais sangue melhor"!

Felizes??
Entram mas é em processo de transformação genética
e desatam a rir quando vêem uma metralhadora real
a matar pessoas reais
em qualquer Burma real do planeta.


Mas temos a maior árvore de Natal da Europa!

Ah, isso está bem!

Consome toneladas de kilowatts,
é plástico,
e foi financiada com os lucros himalaianos de um Banco.

Mas nem tudo é estúpido,
consumista,
comercial,
balofo,
mentiroso,
anti-ecológico,
opiácio,
doentio
e pagão.

Há uma coisa que me derrete o coração:
as musiquinhas de Natal!!

Que é que querem?

Se me cantarem um Jingle Bells ao ouvido,
humedece-se-me os olhos;
com o Silent Night aperta-se-me a garganta;
as canções de igreja põem-me a chorar desalmadamente!

Vejam só:

O menino está dormindo
Nos braços de São José,
Os anjos Lhe estão cantando:
“Gloria tibi domine”.

"O Natal devia ser todos os Dias!",
in “Revista da União dos Comerciantes do Distrito de Lisboa”.



Dezembro 2007

ENCÓMIO CANINO

Cão não é gato.

De fato,
cão é quase gente,
mas não mente.

Também não é leão,
não.
Mas no essencial,
a coragem é igual.

Cão é de homem!
Já viu homem puxando gatinho pela trela?

Gato é de mulher!
Já viu mulher segurando mastim?

Tem assaltante em casa?
Cão enfrenta!
Gato?
Nem tenta!

Gato é companhia...
que mia.
Cão é muleta d’invisual!
Mas que animal!

Cão te adora.
Não te explora,
como gato egoísta e maltês
que já fugiu outra vez!

Meu cão meu amigo.


Novembro 2007

VIDA DE CÃO

Sou um cão.

Ou melhor, penso que sou um cão.

E o meu nome é Cão.

Eu sei que é redundante e pouco criativo,
mas o que é que querem,
são coisas do meu dono.

Dizia ele que era a única forma
de não se esquecer do meu nome.

Ele não é má pessoa,
isto é,
para humano,
não é?

Que os critérios de julgamento serão certamente diferentes,
de canídeo para pessoa mas,
se esquecermos o seu aspecto exterior algo repelente,
a sua fragilidade física,
os dentes de pôr e tirar
e a quase total ausência de pelagem
– excepção feita ao ridículo apêndice capilar
que usa entre o lábio superior e o nariz –
tenho que admitir que já vi donos piores.

Não me falta com comida,
ainda que ultimamente venha a abusar da ração seca.
Água à descrição,
cama e almofada lavada.

Pelo calendário do meu dono,
já tenho 1 ano e meio,
um macho (acho que sou macho) adulto
na primavera da vida.

É precisamente este assunto que me traz preocupado.

Aqui há pouco menos de um ano,
o meu dono levou-me ao médico.
A que propósito, não sei.
Sei que um homem enorme
me segurou em cima de uma mesa,
açaimaram-me de forma humilhante
e injectaram-me um líquido numa coxa traseira.
Quase de imediato,
o corpo perdeu a sensibilidade
e depois a consciência total.

Acordei no carro do meu dono,
nauseado e com uma ligeira dor na região abdominal.

Passei dois dias deitado no meu tapete,
água pouca,
comida nenhuma.

Ao terceiro dia,
senti vontade de apanhar um pouco de ar fresco,
cheirar umas árvores,
ladrar aos pássaros.

Alguma coisa aconteceu.
Não me apeteceu cheirar as habituais partes da cadela da vizinha
e o som do meu latido
parecia mais de um gato envergonhado.

Sou um macho, acho.


Outubro 2007

EU SOU UM TÉNI

Eu sou um téni e estou preocupado com o meu futuro.

E tenho boas razões para estar preocupado.

Acabei de sofrer um terrível e mortal acidente de trabalho.

A minha sola,
melhor dito,
o meu piso,
pois de sola não tem nada,
é pura borracha sintética indonésia,
descolou-se e quase se separou do corpo
quando o meu dono pontapeou fortemente
uma bola molhada.

Nem sei como,
ironias inexplicáveis do futebol,
o remate saiu em arco,
com efeito imparável
e marcou um soberbo e aplaudido golo.

Mas voltando à preocupação pelo meu futuro,
pergunto-me:
para que é que serve um par de ténis que já não é par?

Os ténis,
como as freiras e os polícias,
devem andar aos pares!

Oh minha Adideusa,
Deusa dos Ténis,
já oiço os passos do meu dono!!

Agarra-me fortemente,
como se eu pudesse fugir sozinho e,
estranhíssimo,
atira-me ao ar gritando estridentemente
de tal forma que,
se ouvidos tivesse,
surdo teria ficado,
assim um som de índio americano,
algo como iupiiiiii.

Perdi a consciência num vórtice de terror
em que já me sentia jogado em lixeira malcheirosa
rodeado de alfaces fermentadas,
fraldas recheadas,
seringas ensanguentadas,
limões podres e outras imundices.

Volto a mim,
abro a medo os olhais vazios
por onde corriam habitualmente os atacadores e,
qual o meu espanto,
vejo-me colocado numa prateleira
no escritório do meu dono,
em local de destaque!

Pendurada ao peito,
tinham-me colocado uma placa que dizia:

“Téni amigo, jamais te esquecerei –
Final do Campeonato de Futebol Inter-Escolas, 2006”


Setembro 2007

A MINHA MÃE

A minha rua é mais bonita que a tua!
dizia eu, teria aí uns 5 ou 6 anos.

Como a minha mãe... também é mais bonita que a tua!

O meu pai? Ah, esse não sei, nunca conheci.

Dizem-me que morreu cedo.
De umas vezes, de acidente nunca definido.
De outras, de morte natural, que se teria ficado a dormir.
De outras ainda,
esquecidas as anteriores versões,
de doença grave com grande sofrimento.

Como se me interessasse a causa da morte
ou qual a mais elaborada mentira!

Porque eu sabia, de saber seguro,
daquele que vem de dentro e não carece de prova,
sabia porque sabia e pronto!
que o meu pai estava vivo e se recomendava.
Bem, hoje já poderá não estar vivo,
não sei nem me interessa,
mas que esteve bem vivo muitos e bons anos,
lá isso esteve.
Longe de mim,
em qualquer lugar,
com qualquer pessoa que não era a minha mãe,
certamente feliz.

Talvez se lembrasse, não sei,
nas ocasiões do costume,
natais e aniversários,
do filho que teria semeado e se estava fazendo homem,
talvez.

Não que o meu pai me fizesse alguma falta!
Só faz falta quem está,
dizia a minha mãe, com excessiva convicção.
E eu concordava,
pois a minha mãe,
a mãe mais bonita do mundo,
era minha mãe e meu pai,
oferecia-me a sua vida para que eu viesse a ter vida.

E tanto me deu que a sua vida se esgotou em mim.

Como as flores, começou a murchar e,
num dia igual aos outros,
teria eu os meus doze anos,
secou e morreu,
a minha mãe.


Agosto 2007

VIAGENS DE ELEVADOR

Na verdade, era um simples quinto andar.
Mas experimentem subir e descer,
descer e subir,
todo o santo dia,
mês após mês,
ano após ano,
sem direito a folgas, férias ou salário mínimo,
qual imigrante em empresa de construção!

Até as obrigações descritas em belo cursivo
na tabela de manutenção
eram sovinamente cumpridas,
um pingo de óleo este mês,
um aperto de porcas no próximo,
quando não se ficava por um experto olhar
de está-tudo-bem!

Que sim, senhor,
que também tinha alguns, poucos,
pequenos momentos de felicidade
que me eram trazidos pela visita ocasional
do senhor inspector da qualidade-dos-elevadores.

Mas mesmo estes foram rareando
até desaparecerem por completo
depois de uma conversa de cavalheiros,
que de cavalheiros pouco tinham,
que teve lugar aqui dentro
entre o senhor inspector e o empreiteiro,
em viagem do rés-do-chão para o sexto andar
onde se situava a casa da máquina.
Das vergonhas que ouvi,
ali junto dos meus botões,
como se eu não existisse,
guardarei prudente silêncio.

Pois, por falar em vergonhas,
fiquem os leitores sabendo
que não foram as únicas que me passaram pelo interior!
Nem as maiores!

A vida de qualquer elevador,
mesmo de modesto prédio
habitado por modestas gentes,
daria um filme de prémio assegurado
em qualquer festival digno desse nome.
Cenas de comédia, de tragédia,
de uma, duas e três bolinhas vermelhas.

Ainda ontem!
Então não é que a gorda do 5º esquerdo
resolveu urinar no meu tapete
só para poder acusar a cadela rafeira
dos vizinhos do 4º esquerdo que,
ora não a deixa dormir,
ora traz pulgas para o prédio.
Pulgas! Pulgas traz o canalizador que,
semana sim semana não,
lhe vai tratar da canalização!
Canalizador, claro, e eu sou um Jumbo 747!

E os àvontades do senhor Oliveira do 5º direito
que tresanda a Old Spice
com a senhora das limpezas do 3º esquerdo?
Ainda no domingo passado,
à hora da Missa,
lá vai ela direitinha ao 5º andar.
O cheiro a Old Spice que ela trazia
quando voltou meia hora mais tarde,
até me embaciou o espelho.

E mais, muitas mais histórias teria para contar.
O que as pessoas fazem
quando se fecham na privacidade do elevador,
valhamedeus,
limpam os dentes com as unhas,
experimentam sorrisos,
compõem decotes,
libertam arrotos e borborigmos,
soltam flatulências,
ajeitam as gravatas no pescoço
e as cuecas no rabo,
cheiram-se nos sovacos.

Mas o meu tempo e a minha história acabaram.
Estou, dizem, fora de prazo.
Imaginem, como se fosse um iogurte!

Vou ser substituído
por uma daquelas horrorosas caixas de aço,
com luzes embutidas no tecto
e porta automática com sensor electrónico
e música ambiente.

As histórias que se gravaram
nas minhas madeiras a que chamavam exóticas
(pinho folheado, era o que era!),
morrerão em qualquer fogueira de sem-abrigo.


Abril 2007

TERRA

Aquela terra tinha um estranho nome,
como estranhas eram as pessoas que lá viviam.

Mas o que é um nome, afinal?

Uma identidade, dirão.

E dirão mais, que uma identidade, como um nome,
tem que nos identificar
e nós temos que nos identificar com ela.

Aquela terra chamava-se Terra.

Mas as pessoas que habitavam em Terra gostavam da terra.

Gostavam por ser simples mas profunda,
porque dava muito e pedia pouco.

Gostavam das suas cores, dos seus cheiros, disto e daquilo.

Terra era uma terra pródiga,
que dava sem ver a quem,
e dava porque era assim a sua natureza.
Os habitantes de Terra,
como seus filhos que eram,
viviam apenas da terra.

Um dia, sem avisar, a terra secou e morreu.

E Terra morreu com ela.


Março 2007

A DONA NOÉLIA

A D. Noélia caiu direitinha do 10º andar para o piso térreo.

Não desceu pelas escadas nem tomou o elevador.

Nem saiu pela porta do prédio de apartamentos.

Saltou pela janela.

A D.Noélia não sabia voar.

E não sabia que não sabia voar.

Infelizmente esborrachou-se nas pedras do passeio.

O prédio era dos anos 50 e tinha a fachada revestida
com aqueles pequeninos mosaicos vidrados
muito bons de lavar.

Ainda bem que tinha aqueles mosaicos vidrados,
pois assim foi fácil lavar os restos da D. Noélia
que não sabia voar.



Janeiro 2007

segunda-feira, 1 de junho de 2009

POR CAUSAS


POR CAUSAS


A vida vivida por causas
foi sacrificada ao altar
das vidas entre as pausas da novela do jantar.

Não há causa que me arraste
para além das seis da tarde.

Não há desafio que me afaste
da defesa intransigente de nada fazer na vida.

Tenho pena dessa gente
que sofre, desprotegida, até acendo velas por eles.

Mas que posso eu fazer?

Os deuses nunca se enganam
nem castigam por prazer
e é por isso que se danam as almas nas profundezas!

Redimem pecados, malvadezas,
que carecem ser expiados
por anos de padecência.

Voltarão a conviver,
sob a lei da obediência,
e assim não ter que pagar para outra vez poder ver
a novela do jantar!

terça-feira, 19 de maio de 2009

QUINTILHAS A PROPÓSITO


I
lá vem o profeta arrivista,
sacerdote sacripanta,
nepotista, narcisista,
pescador de água santa,
assanhado catequista

ii
desde o estigma batismal
da ungitura batista,
a figura clerical
todos encanta e conquista
com bolachas de água e sal

iii
arreado de mirra e ouro,
bate três vezes no peito,
esconjura o mau agouro.
acena ao rebanho com jeito
e som gregoriano em coro.

iv
corre o crente timorato
aos mega saldos de bulas
e perdões ao desbarato
p’rás luxúrias, iras e gulas,
enchendo o cofre beato

v
flagela-se com fervor
o pagador de promessas
ao magno inquisitor.
oh abades e abadessas,
revoltai-vos, por favor!


Maio 2009

quinta-feira, 14 de maio de 2009

CRETA REVISITADA

I
o mar morno mediterrânico
renasce nas mesmas pedras,
agora feroz,
logo lânguido,
século após século
a perder de vista
no poço profundo da história
da ilha de creta.

II
ameias, guaritas,
torres e palácios,
tijolos empilhados
com preceito castrense,
marcam a paisagem,
preservam as fronteiras do tempo
e guardam os segredos de cnossos
na ilha de creta.

III
em dia de sol ouvi
o roçagar das asas de ícaro,
filho de dédalo,
sobrevoando o labirinto
e vi o bastardo minotauro
morrendo à espada de teseu
que não amava ariadne,
na ilha de creta.

IV
sob a porta dos leões
escutei os contos de homero
que exaltavam agamenon,
rei de micenas
das muralhas ciclópicas,
protegido de poseidon,
deus dos mares e das terras
da ilha de creta.

V
ressoavam nas pedras
as patas dos cavalos otomanos,
cruzam-se cimitarras serracenas
com lanças de cruzados hospitalares
e punhais venezianos
em roubos, pilhagens e morte,
corre sangue bizantino nas ruas
da ilha de creta.


Abril 2009

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O BIGUE BANGUE

Dizem que nascemos d’um bigue bangue!
Então não somos filhos de Deus?
Oh pecadores! Ooh filisteus!

Chamam-lhe agora de efeito doppler
ou coisas que tais da física quântica!
Que disparate! É tudo semântica!

E o biguebangue, quem fez?
Caiu do céu, aos trambolhões?
Ah, calei-vos! já não tendes opiniões?

Já sei! Foi outro bangue que, qual espoleta,
fez explodir o nada com força galática,
criando o mundo em progressão matemática!

Mas outra vez, voltamos ao mesmo.
E desse bangue, quem foi o autor?
Da alma vem a resposta: o Criador!

Atentai, pois, tresmalhadas ovelhas,
A fé responde ao que a ciência ignora,
lede a Bíblia, o Corão ou a Tora.
...........................................................

Não nos treme o coração, oh mensageiro!
Não somos papistas nem judeus!
Somos ateus, graças a Deus!


Janeiro 2009

MANDEI VIR UMA PIZZA

era um dia daqueles dias
em que me sentia bem demais....

por nada em particular,
o espírito, corria-lhe bem a vida,
o corpo cumprindo funções vitais
sem precalços de maior,
contas pagas, geladeira abastecida.

talvez fosse isso mesmo,
o sindroma da sonolência segura da auto-estrada
....................................

tinha amigos para jantar.
seriam cinco, comigo, os comensais.
não era problema, a ementa,
vou mandar vir uma pizza, ou mais.

vinho branco, tinto e cerveja
é tudo o que se deseja num encontro
em que poetas e outros pintores
se juntam pra resolver as dores
dos problemas do mundo.

deixem que vos apresente os convivas:

a adriana renascida, ainda lambia a ferida
de uma viagem perdida à terra da inocência;

o rodrigo metafórico, vinha a entrar,
eufórico, por ter convencido um padre a casar;

a nina, que escreve bem ou mal,
conforme os gostos,
chegou curando os desgostos da sua opção rural

o carlos, de carcavelos, que é mestre em duelos
poéticos e aplicadas engenharias

e, por fim, o santiago, que anfitria a reunião,
ainda procura a razão porque queria ser actor.

conversa puxa conversa,
que sim senhora, que não senhor,
prosa puxa poema,
rima que rima,
e assim se concluíu que a culpa é do sistema!

“só lá vai com um bota-abaixo!”
uivava o rodrigo, umbigo fremente!

“que não”, murmurava adriana,
ainda em postura de lótus,
“há que respeitar as diferenças,
olhem só os homozigotus!”

recostado na poltrona,
olhos meio-adormecidos,
dizia o carlos, convicto:
“estamos é todos fodidos!
isto já não vai com mezinhas nem missa dominical,
só porrada nos políticos e uma limpeza geral!”

“tou nessa!” gritava a nina, “carago!
quem fala assim não é gago
e vamos mas é ao qu’interessa!”
..................................................

ergue o santiago a voz, então,
e com um gesto largo da mão,
diz “meus amigos, camaradas de letras
e outras artes variadas,
bate-nos à porta a polícia chamada pelo vizinho!
a vossa missão foi cumprida!
a pizza já foi comida
mais a caixa de cerveja e três garrafas de vinho.


Fevereiro 2009

NÃO HÁ DIA

Não há dia que passe
Nem noite que não acabe
Sem que pense em ti.

Não há hora que se esgote
Ou tempo de qualquer tempo
Sempre que penso em ti.

Não há terra não há mar
Nem sítio de qualquer mundo
Onde não pense em ti.

Contra deuses, contra homens,
Mesmo para além da morte,
Não deixo de pensar em ti.


Novembro 2008

A MENINA QUE COMIA VERSOS

Que gorda que era a menina!

Não era redonda, nem forte,
nem eufemisticamente cheia,
muito mais grossa que fina.

Era gorda mesmo, qual baleia!

Comia a vida e a morte,
comia de dia e de noite,
por gula, apetite ou deleite
de tudo, tudo comia!
De tudo... salvo seja!,
desde que fosse poesia!

Não questionava o género,
fosse didático ou lírico,
fosse épico ou satírico,
tudo comia sem mastigar!

Mais seria de admirar
que a métrica a incomodasse!
No que toca a silabar,
ao menos um pentassílabo!,
– diria a quem perguntasse.
Mas para a fazer salivar,
um rijo dodecassílabo!

Quanto à música poética,
versos duros, cacofônicos,
versos soltos, sibilantes
de todos, os homofônicos
eram os mais irrelevantes.

Sobre as estrofes, a estética
em nada a preocupava,
fosse um soneto ou uma décima,
um rondó ou uma sextina
de forma igual tudo amava.

Na definição dos temas, porém,
desenvolveu uma alergia,
depois de odes ou madrigais,
não lhe assenta muito bem
éclogas, sátiras ou elegias.

Acrósticos ou pastorais
têm problemas semânticos,
não se podem misturar
com hinos, salmos ou cânticos.

Já nénias e epicédios,
ditirambos, epigramas,
é de comer até fartar.

Não obstante os remédios,
triste fim tem esta rábula,
acabou mal a menina,
foi morrer de falta de ar
entupida por uma fábula.


Novembro 2008

A BESTA

Rasgado o hímen social,
quebrada a redoma cultural,
emerso o atávico medo,
surge a besta-homem
em todo o seu
repugnante esplendor.


Novembro 2008

AS PORTAS

Não importa
que uma Porta se feche,
o que importa
é que outra Porta se abra.

É isso, a Vida,
uma sucessão de Portas
que se abrem e fecham
umas para as outras,
sempre para a frente,
frente com costas,
frente com costas.

As Portas ...
nunca se abrem para trás!

Sempre para a frente,
até à última Porta.


Julho 2008

O PÕESSAJEITO

O seu nome de baptismo era António de S. Tomé.
Não se lhe conhecia pai nem mãe.

A graça de António foi obra do padre da freguesia de quem,
diziam as más línguas,
mais pai que padre,
fervoroso admirador do santo do mesmo nome.

O calendário litúrgico marcou-lhe o dia do baptismo
e emprestou-lhe o apelido.

Pena foi que alguma santidade
não tivesse encontrado osmose para o miúdo
que nesta altura ainda era António.
Sim, porque tempranito se lhe mostrou o carácter,
ou a falta dele.

Logo na creche onde se criou,
aprendeu a puxar o muco nasal
para o prato do colega mais próximo
e sabotava com mestria os brinquedos
apontando outro como autor.

Cedo dominou a arte da queixinha,
a troco de bolacha Maria ou outros favores.

Talentoso mentiroso,
desde cedo se tornou lusito brilhante na Mocidade Portuguesa
e legionário dedicado ao serviço da causa nacional
e da sua própria.

Logo que começaram a soprar
os primeiros ventos de mudança,
aderiu à juventude partidária
estrategicamente colocada à esquerda encostada ao centro.

Cursou Direito,
que algum conhecimento de leis,
mesmo mediocremente obtido por cópia e cábula,
pode vir a jeito.

Mas não se pense que é fácil
e isenta de escolhos a vida destes Antónios.
O sucesso é reservado apenas
aos que verdadeiramente se aplicam de alma e coração.
Desde logo,
vendendo a alma a quem mais por ela der.
Depois, remetendo o coração
às suas mais mesquinhas físicas funções,
proibindo-lhe radicalmente qualquer devaneio sentimental.
Quanto à coluna vertebral,
impõe-se-lhe intensa ginástica
até que a sua ridícula rigidez óssea
se transforme em maleável tecido cartilagíneo,
permitindo ao seu dono
assumir a posição mais adequada a cada situação.

Tornou-se rapidamente homem de mão de todo o chefe,
presente ou potencial,
muleta indispensável aos escalões superiores da hierarquia.

De tal forma se especializou na função
que o seu nome cedo se enriqueceu,
sendo Dr. António para cima
e Pôessajeito para o lado e para baixo.

A passagem pela modesta mas selectiva militância partidária
rendeu os frutos esperados
e a breve trecho se abriu atapetado caminho
em obscuro gabinete de ministro influente.

A prevista vitória do partido
premiou-o com assessoria de gabinete e secretária
por esforçados serviços prestados,
cumulado pela integração nos quadros da função pública.

Os tempos correram,
ministros que sairam,
outros que entraram,
e a todos o nosso Põessajeito dava jeito.

O seu inegável talento
era por todos reconhecido e por todos louvado.
E profusamente utilizado,
à esquerda, à direita e ao meio.

Mas a estrela do Põessageito arrefecia.

Outro põessajeito,
rival do Dr. António,
mais novo e mais letrado,
cometeu a suprema indelicadeza,
a miserável falta de ética carreirista,
de denunciar insignificante erro administrativo
na atribuição de fundos comunitários,
dos quais parte foi depositada
por mão mal intencionada
nas conta bancárias do Dr. António.

Bem clamou inocência o Põessajeito,
bem ameaçou que
“se eu cair, muitos cairão comigo!”,
mas de nada lhe serviu.

Este contratempo,
que noutros tempos
mão amiga não deixaria passar da secretaria do tribunal,
acabou nas mãos de juiz
com pretensões a Garzon da comarca,
que decidiu dar provimento ao processo,
de onde resultou,
oh suprema injustiça,
uma pena agravada de 10 longos anos de prisão.

Não há justiça neste mundo!


Julho 2007

ACORDAR

Abro os olhos, renitente,
acordo de um sono pesado
que cansa mais que repousa
e pinta de escuro o mundo.

Um novo dia começa, ou o velho não acabou?

Uma parte de mim quer abrir-se
ao novo dia que nasce,
outra recusa e recolhe
ao aconchego do silêncio.

Não me suporto o peso e a pele parece que dói.

Sinto o corpo a decidir,
como se vida própria tivesse,
que o dia que desponta não passa
de mais um passo vazio.

Há dias que mal começam,
começam mal.


Março 2007

PARTILHAR

Partilhar é acto de amor.
Mais que dar ou receber,
dividir tem o sabor
de dois serem um ser.

Beber da mesma taça,
ter o mesmo pensamento,
às vezes até embaraça!

Parece que nesse momento,
toda a ternura que abraça
tão profundo sentimento,
tem tal força que os enlaça
em perpétuo movimento.

Olhos nos olhos cravados,
mãos amarradas em nó,
desejo nos corpos suados,
corações fundidos num só.

Mas faz medo, também!
Deixar de ter o meu eu
para dividir com alguém
o que agora era só meu.

Vale a pena não saber
e correr o risco de dar
ainda que sem receber,
pois quem se abre para amar
abre-se também p’ra sofrer.


Janeiro 2007

INTROSPEKT REVISITADO EM 4 ACTOS

ACTO I - VERDE


Dizer que a vida é um palco
É clichê.

Talvez por isso
faça sentido,
como todos os lugares-comuns.

Este,
podia ter outro nome,
podia chamar-se eu.

Que eu sempre vivi em palco.

Vivia como os actores,
Vivendo a vida dos outros.


Novos papéis
em peças velhas,
velhos papéis
em peças novas,
mas sempre em palco.

Em diferentes tempos
e espaços,
mas sempre em palco.

No princípio era fácil.

Não havia muitas peças,
não havia muitos palcos.
Papeis pequenos,
bem definidos.
Público pouco atento,
displicente até.

A luz cegava
o aprendiz de Molière
até o pano começar a cair.


ACTO II – AZUL


Foram-se os anos,
o tempo mudou,
o espaço também.

Os papeis cresceram em número e complexidade
O público?
Ah, esse tornou-se exigente,
por vezes cruel.

Cometi alguns erros,
tive umas brancas,
ouvi palmas e assobios,
mas sobrevivi.

Ou, pelo menos, assim pensei.

Oh ingenuidade!
Não me apercebi que alguns personagens,
aqueles a quem mais me dei,
iam cobrando o seu preço.

Tarde era quando me olhei e não me vi.

Em processo continuado,
sub-reptício,
o actor esvaía-se nos personagens.

Inexoravelmente.

Até que se omitiu de vez
e a obra tomou o lugar do criador.

Assim posto, parece loucura!
Mas não é.
(pelo menos na opinião dos personagens).

Apenas se aprende a viver
sem vida própria.

Cai o pano,
contrariado.

ACTO III - VERMELHO

Mas a peça continua
mesmo com o actor fora de cena,
e outro acto se segue.

Os personagens principais,
os que mais de mim receberam,
lutam agora entre si
por mais espaço,
mais tempo,
e mais corpo do actor.

A causa comum acabou.

Um dos personagens da história,
nem sequer o de mais valor,
arroga-se agora o direito
de ocupar o lugar
que em tempo pertencera ao actor.

O que não seria uma má solução,
se este tivesse opinião,
pois poderia, assim, renascer
e tomar, enfim, a forma
de personagem principal.

“Se não te conhecesse,
diria que eras outra pessoa”!
Outro clichê!
E outra vez cheio de sentido.
O actor original saiu de cena,
perdeu existência,
deixou de ser.

Nota do Autor:
Experiências tem mostrado que transmutações de um actor com mais de três personagens tornam-se frequentemente incontroláveis e podem conduzir ao caos e à insanidade.



ACTO IV – NEGRO

Quase a cortina a correr,
resta um problema, contudo.
Os personagens que se formam
e assumem vida própria,
não têm memórias originais.

Não nasceram no tempo
do actor que lhes deu vida.

Foram criando vida roubando vida ao actor,
levando consigo pedaços desgarrados
da memória primordial.

Como, então, os personagens
se podem tornar inteiros?

Bom, memórias são histórias,
verdade?
Se são verdadeiras ou inventadas,
só é relevante para quem as viveu.

Basta repeti-las, afiná-las,
qual peça de música,
e logo elas se tornam mais reais
que as histórias originais!

Pronto, o actor morreu
dando vida aos personagens
que lhe vão prolongar a vida.

Noutro tempo e noutro espaço.

Cai o pano,
definitivo.


Janeiro 2007

A ESCOLA 151

A Escola 151 era uma escola,
igualzinha às outras escolas da época.

Tinha cheiro a escola.

Tinha paredes brancas,
telhados vermelhos e salas de aula.

Tudo a dobrar, é claro,
é bom não esquecer
que as meninas e os meninos
tinham que aprender separados.

Tinham mesmo que brincar separados,
o Muro do recreio tinha essa responsabilidade.

Guardar o recato das meninas.

Ou seria para preservar os meninos na sua masculinidade?

A Escola 151 tinha também,
como certamente todas as outras,
uma professora de aritmética,
D. Emilia,
que era dona do quadro preto.

E de um objecto a que ela chamava
instrumento pedagógico
mas que para nós era a menina-de-5-olhos porque,
qual anjo vingador,
tudo via e tudo sabia.

E que punia sem piedade
as meninas e os meninos
que pecavam nas contas de subtrair.

Ricos ou pobres,
que para o instrumento pedagógico não havia classes.

Pudera, diriam alguns, eram todos pobres!

Alguns seriam,
como na altura se dizia,
remediados,
que burguês não se podia dizer,
tinha um contexto menos avisado.

Certa tarde de Inverno,
rigoroso como os tempos de então,
a chuva foi tanta, tanta,
que o muro que guardava o recato das meninas, caiu.

Na manhã seguinte,
os meninos de um lado
e as meninas do outro lado do muro que tinha caído,
olharam-se.

E cada um ficou do seu lado
como se o muro não tivesse caído.

Não eram passados dois dias,
caíram todos os muros de todas as escolas daquele País.


Abril 2007

A COUVE PORTUGUESA

A couve, no seu pé, era linda.

Não era muito alta, que isso são as galegas.
Mais tronchuda, mais portuguesa.
Forte de pé e de peito,
coração grande e sensível.
Verde, claro, como todas as couves que se prezam.
Que ele as há vermelhas, transgénicas certamente.
Ou pior, infiltradas.
E sem flor,
nada de ornamentos de duvidoso significado.
Folha larga, aberta ao vento, suave ao toque,
sem as rugas do repolho.
Chamam-lhe Portuguesa.

Esta couve,
é bom que se diga,
não o é tanto assim.
Vá-se lá saber porquê,
no Norte,
chama-lhe Penca a minha avó.
Ainda se fosse Penca-Portuguesa,
mas não, é Penca só.

Não importa,
basta um breve olhar
para que o espírito da couve
nos encha o imaginário
dos feitos gloriosos dos nossos ancêstemos.

A nobreza do peixe cozido
cairia da cota de armas sem o suporte da couve.

E atente-se,
que o magnífico Cozido não seria à Portuguesa
sem o luso vegetal que lhe dá o nome!

E a sopa?
Que seria da sopa,
alicerce cultural da gastronomia portuguesa,
sem o aconchego da Penca?

Oh varões de Portugal,
faça-se justiça,
sublime-se a História!

Substitua-se já a esfera armilar da bandeira portuguesa
por escudo de quatro couves em campo de trigo!


Março 2007

OPRESSÃO

Subo uma escada,
vejo uma luz,
abro uma porta,
entro.

Vultos sem rosto
movem-se lentos
abrindo-se em leque,
atraindo-me para o centro de um círculo
de luzes intensas e muito brancas.

Os vultos crescem sobre mim.
Cobrem-me o céu e dão-se as mãos
fundindo-se num quase muro-prisão.

O ar que rareia
é quente e pesado.
Tem cheiro de casa fechada,
tornando o acto de respirar em esforço inaudito.

Sinto suor atrás no pescoço,
de um medo atávico de não sei quê.
O muro cresce e aperta-me o espaço.
Tenho que fugir!

Quase não consigo andar,
carrego nos ombros o peso do mundo.
Grito sem som,
arrasto-me contra o muro
que afinal não existe,
E respiro finalmente.

Abro uma porta,
desço uma escada,
vejo outra luz,
Acordo.


Janeiro 2007

CINZENTO UNIVERSAL

Branco, negro, cinzento.

Na criação foi o negro,
Da migração nasce o branco.
De um percurso lento, lento,
O que foi negro original,
Por mutação peregrina
Até ao branco final,
A diversidade congrega
Toda a paleta de tons
Da pessoa universal.

Se eu pudesse mandaria
que a cor fosse abolida,
a sombra ocultasse a luz
e a alegria proibida.

Bem melhor seria o mundo
Se a tristeza fosse lei.


O riso, de pouco siso,
Próprio de simples e tolos,
Passaria a clandestino,
Excluído e perseguido
Pela ordem cinzentista.

Pena de morte ao vermelho,
Cor das penas do inferno!

O azul que só faz lembrar
Quando o céu morre no mar.

O verde da esperança efémera
De ser castanho de inverno.

Amarelo, mal amado,
Bandeira de toda a peste.

Acabemos com a cor,
Sejamos todos iguais,
Negros, brancos, cinzentos.


Novembro 2006

quinta-feira, 7 de maio de 2009

ODE À RIMA

(estrofes I e II, cantadas pelo solista, sem rima, versos equilibrados)

Pobre, triste, abandonada,
fora de prazo e de moda,
longe dos tempos medievos
em que à mesa del Rey sentava.

Desprezada pela métrica,
antiquada, conservadora,
cinzentista ensimesmada,
sem-abrigo da poesia moderna.

(antístrofe, cantado pelo coro, com rima)

Não nos venhas assombrar!
Fora, fora, rima maldita!
deixa-nos trabalhar,
não nos compliques a escrita!

(epodos stichos, cantado pelo solista, sem rima, versos grandes e pequenos)

Guarda-te, contudo, oh rima amada e nunca esquecida,
o teu tempo voltará!
Oh sal da poesia, a quanto canto deste o ritmo e a cor,
quantas almas enlevaste
ao som de belas e tónicas homofonias.

(antístrofe final, cantado pelo coro, com rima)

Abaixo o verso livre e grosso!
Morte aos poetas traidores
e ao seu canto velho e moço!
Sem rima, são prosadores!


Janeiro 2009

DESPEDIDA

acabou,
nem antes nem depois,
acabou no momento certo,
acabou quando ele achou
no seu inescrutável conhecimento,
que tudo estava dito,
que tudo estava feito.

altura de partir
que outras terras o esperam
para além, muito para além
do minho de olhos azuis,
das áfricas negras e brancas

talvez, digo eu,
pudesse ter ficado mais tempo,
mas sei que no lugar p’ra onde vai
também há relógios por consertar
e laranjeiras por plantar.

......................................

pode ir, pai,
mas tenha cuidado, agasalhe-se
que a viagem será longa,
e as noites podem ser frias,
como em sintra, lembra-se?


Abril 2009

SE EU FOSSE....

se eu fosse deus
mandaria abrir o céu p’ra toda a gente

se eu fosse rei
decretaria que o palácio fosse a casa do povo

se eu fosse homem
pediria perdão a todas as mulheres do mundo

se eu fosse árvore
correria pelas ruas pintando as cidades de verde

se eu fosse pedra
gostaria que o meu coração sangrasse p’lo meu amor


Abril 2009

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A PRIMEIRA VEZ QUE NASCI

a primeira vez que nasci

teve tradicional configuração,
reza a história, que eu não assisti.

gemidos de complexa composição,
de dor e de euforia,
talvez mais de libertação,
por parte da mãe-criadora.
mulher de coragem, note-se,
que a primavera da vida
já tinha passado, faz tempo.

algum provável choro,
de revolta ou de prosaica
palmada nos glúteos
do protagonista do acto
(este que vos escreve)
energicamente aplicada por diligente enfermeira.

lavado, escovado e alimentado,
deitaram-me no berço hospitalar
reservado para essas ocasiões.

fechei os olhos,
fingi que dormia e pus-me a pensar.
sim, a pensar,
não da forma despegada e preconceituosa dos adultos,
mas a pensar como só as crianças pensam.

e senti que alguma coisa não estava bem

não, não é isso,
dedos, olhos, orelhas ....
essas minudências contavam-se pelo número habitual
implantadas nos locais convencionais.

era outra coisa
assim uma sensação estranha ....
de não me sentir bem vindo.


Março 2009

MEU ABRIGO


Como é bom ser um, contigo,
sendo dois,
........................... bem separados.

Até os caminhos que sigo
me levam, determinados,
aos teus braços,
........................... meu abrigo.

Estou perto de ti, mesmo quando
o tempo nos quer separar,
quer vá pelo mar,
........................... navegando,

ou entre a poeira estelar
de asas abertas,
........................... voando.

Estende, meu amor, a mão
e agarra a minha,
........................... de amigo.

Juntos, em comunhão
partiremos,
........................... abraçados

como se fosses um, comigo,
sendo dois,
........................... bem separados.


Fevereiro 2009

O SEGREDO


não sei se deva falar
ou reprimir o segredo

guardá-lo debaixo da pele,
longe da vista e do medo
de sentir que meu coração
infiel
se vendeu por um olhar teu

sei de certeza segura
que o meu amor por ti cresceu,
cresceu desde que te vi e perdura
forte
pelo tempo que passa

fecho os olhos para que teus olhos
não vejam o que os meus olhos querem
esconder
correm mil anos e não me vem força que faça

apenas dizer que te amo


Janeiro 2009

domingo, 3 de maio de 2009

ODE À CRISE


Nasceu de berço d’ouro em Uolstrite
onde cresceu, engordou e se fez dama
educada para todo o serviço
qual dona de fino bordel,
bem longe da Meinstrite.

Comprou casa apalaçada em ofechore
de opções e futuros onde os presentes
se banhavam em taxas de juro
com espuma de édgefand
e softuére de Bangalore.

Moedas, derivativos e fundos de mágica,
imobiliário à vista e hipoteca a perder de vista
de tudo se alimentava a crise
qual doente terminal
em orgia cega e autofágica.

Ah mas a ópera bufa chegou ao grandfinal
com bolo de creme e menina de stripetise,
quiseram comer a Meinstrite
à mesa do orçamento
com ajuda governamental.

Aqui delRey, estamos perdidos, é o abismo!
Gritam banqueiros, balem gestores de fortunas.
Homens de pouca fé! digo eu,
nada como um governo social
pra salvar o capitalismo.


Novembro 2008

TATUO-ME, LOGO EXISTO


Uma tatuagem,
tanto pode ser mensagem
como simples provocação.

Pintar o próprio corpo,
à mão,
é preciso ter coragem!

Coisa velha como o mundo,
a tatuagem.

Já madame cromagnon,
com rimmel, creme e baton
aos deuses prestava homenagem.

Caçadores, predadores e matadores,
faraós, sacerdotes e vendedores,

guerreiros, marinheiros, fuzileiros,
talhantes, merceeiros e padeiros,

damas, putas, esposas e concubinas,
Antonietas, Bolenas e Josefinas,

homos, heteros e outros heróis,
Batmans, Rambos, índios e caubóis,

Luís Décimo-Quarto e Salomão,
Átila, Hitler e Napoleão,

Samurais, Incas e Maias,
gregos de tutu, escoceses de saias,

toda a gente se devia tatuar
p’ra gritar
"- Existo, sou diferente!
Sou moderno, sou p’rá frente!
Rejeito a carneiresca mesmice
Da engravatada sonsice!

Tenho um cristo no meu peito
e uma espada mesmo a jeito
que corre do ombro p’rá mão.

Junto ao umbigo um dragão!",
paroxítono como deve ser
(ainda que nada tenha a ver).

Mas já vai longa esta prosa,
ou verso, qu’é como quem diz!

Só vos quero mostrar a rosa
que um feiticeiro aprendiz
me gravou com mão airosa
mesmo na ponta do nariz!


Dezembro 2008

INDECISÃO CIRCULAR


Saber quando dizer não,
saber quando dizer sim,
sempre me fez confusão.

Podia ser assim assim,
mas isso não é opção!

Há que ser firme e escolher,
tomar a melhor decisão.

Ouvir e compreender
o que diz o coração
do fundo do seu saber.

Mas o coração e a mente,
nem sempre andam de mãos dadas,
e o coração só sente
ideias alvoroçadas
que perturbam toda a gente.

A mente, por seu lado,
é discreta e factual.
Não deixa que qualquer fado
a desvie do racional
p’ra tomar caminho errado.

Não me vou precipitar!

Pois há que ter paciência
e esperar que em meu lugar
a divina providência
apareça para ajudar.

Vamos então resumir
e tomar uma decisão.

Dizer sim quando sentir
o bater do coração,
dizer não sempre que ouvir
a voz sábia da razão.

Mas se o coração mente
e a mente não tem razão?

O melhor é simplesmente
não tomar a decisão!

Pôr um ar d’ inteligente
p’ra que o sim possa ser não
e o não... principalmente.

Mas que grande confusão!


Novembro 2006

MOMENTO


Quando o sol abre,
relutante,
caminho à noite,
e cai o vento
e se acalmam as ondas do mar,
nesse intenso momento,
fascinante,
a vida suspende-se
e o mundo pára, atento!

Um místico silêncio,
quase de oração,
cai sobre o campo,
expectante,
e as sombras tingem
de negro o chão,
e o momento, fugaz, acabou.


Novembro 2008

A RIBEIRA

Cresce, feliz, a ribeira
que o inverno fecundou,
já prenhe de águas novas.

Abrem-se os braços das margens,
Dançam as algas dos fundos,
Rolam os seixos, gaiatos.

Saltam os peixes mais alto
e brilha a prata da renda
que a espuma tece a fugir.

Corre, cega, a ribeira
p’ra morrer de amor p’lo mar.


Janeiro 2008