sexta-feira, 8 de maio de 2009

INTROSPEKT REVISITADO EM 4 ACTOS

ACTO I - VERDE


Dizer que a vida é um palco
É clichê.

Talvez por isso
faça sentido,
como todos os lugares-comuns.

Este,
podia ter outro nome,
podia chamar-se eu.

Que eu sempre vivi em palco.

Vivia como os actores,
Vivendo a vida dos outros.


Novos papéis
em peças velhas,
velhos papéis
em peças novas,
mas sempre em palco.

Em diferentes tempos
e espaços,
mas sempre em palco.

No princípio era fácil.

Não havia muitas peças,
não havia muitos palcos.
Papeis pequenos,
bem definidos.
Público pouco atento,
displicente até.

A luz cegava
o aprendiz de Molière
até o pano começar a cair.


ACTO II – AZUL


Foram-se os anos,
o tempo mudou,
o espaço também.

Os papeis cresceram em número e complexidade
O público?
Ah, esse tornou-se exigente,
por vezes cruel.

Cometi alguns erros,
tive umas brancas,
ouvi palmas e assobios,
mas sobrevivi.

Ou, pelo menos, assim pensei.

Oh ingenuidade!
Não me apercebi que alguns personagens,
aqueles a quem mais me dei,
iam cobrando o seu preço.

Tarde era quando me olhei e não me vi.

Em processo continuado,
sub-reptício,
o actor esvaía-se nos personagens.

Inexoravelmente.

Até que se omitiu de vez
e a obra tomou o lugar do criador.

Assim posto, parece loucura!
Mas não é.
(pelo menos na opinião dos personagens).

Apenas se aprende a viver
sem vida própria.

Cai o pano,
contrariado.

ACTO III - VERMELHO

Mas a peça continua
mesmo com o actor fora de cena,
e outro acto se segue.

Os personagens principais,
os que mais de mim receberam,
lutam agora entre si
por mais espaço,
mais tempo,
e mais corpo do actor.

A causa comum acabou.

Um dos personagens da história,
nem sequer o de mais valor,
arroga-se agora o direito
de ocupar o lugar
que em tempo pertencera ao actor.

O que não seria uma má solução,
se este tivesse opinião,
pois poderia, assim, renascer
e tomar, enfim, a forma
de personagem principal.

“Se não te conhecesse,
diria que eras outra pessoa”!
Outro clichê!
E outra vez cheio de sentido.
O actor original saiu de cena,
perdeu existência,
deixou de ser.

Nota do Autor:
Experiências tem mostrado que transmutações de um actor com mais de três personagens tornam-se frequentemente incontroláveis e podem conduzir ao caos e à insanidade.



ACTO IV – NEGRO

Quase a cortina a correr,
resta um problema, contudo.
Os personagens que se formam
e assumem vida própria,
não têm memórias originais.

Não nasceram no tempo
do actor que lhes deu vida.

Foram criando vida roubando vida ao actor,
levando consigo pedaços desgarrados
da memória primordial.

Como, então, os personagens
se podem tornar inteiros?

Bom, memórias são histórias,
verdade?
Se são verdadeiras ou inventadas,
só é relevante para quem as viveu.

Basta repeti-las, afiná-las,
qual peça de música,
e logo elas se tornam mais reais
que as histórias originais!

Pronto, o actor morreu
dando vida aos personagens
que lhe vão prolongar a vida.

Noutro tempo e noutro espaço.

Cai o pano,
definitivo.


Janeiro 2007

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