segunda-feira, 29 de junho de 2009

RIMA-PADRÃO

I
Não fora a terminação
seria uma boa palavra, padrão.

Rima com facilidade
nem requer habilidade
para jogar com palavrão.

Virá de padre, suponho,
ou talvez não passe de sonho
ou de normalização.

Vejamos a etimologia...
ou melhor, a alegoria:

II
Diogo Cão, no Bojador,
diz a lusa historiografia,
que passou além da dor
e deixou padrão quando queria
ser da Índia conquistador,
buscando a especiaria
e provando ao Rei seu valor.

III
Na estatística , o padrão,
é medida de dispersão,
se for desvio é raiz
quadrada da variância;
se do total da população
dá pelo nome de sigma,
esquisita substância
que parece ser um estigma
de quem não sabe o que diz.

IV
Na ciência é paradigma,
filosófica referência
da razão pura, o exemplo
de Salomão e do templo
dos vendilhões, da ganância,
que Cristo, sem relutância,
expulsou à bofetada,
definindo o padrão da verdade
para a longa caminhada
dos homens de boa vontade.

V
Na vida do homem de bem,
o padrão é um farol,
como a estrela de belém,
assim uma espécie de sol
percursor do gps,
leva-me sempre a bom porto
ainda que eu já estivesse
gelado, duro e bem morto.


Junho 2009

domingo, 21 de junho de 2009

ACOSSADO

acomete-me por vezes uma estranha sensação
de que alguém ou alguma coisa me quer
empurrar para um canto,
limitar-me o espaço,
apequenar-me à condição doméstica
de coisa que é d’outrem,
travar-me a fala e o pensamento,
condicionar-me a memória.

sustenho a revolta
e deixo-me empurrar
e sujeito-me,
quase de bom grado,
quase grato,
ao conforto do canto,
à comodidade de bicho de companhia

mas logo me sobe ao peito
uma dor de raiva contida
de animal acossado
que morde e rasga a mão do carcereiro,
pois mesmo um rato ganha dentes de lobo
quando nem rato o deixam ser

acordo sempre com a boca seca.


Junho 2009

sexta-feira, 12 de junho de 2009

NAS TULHERIAS COM CHICO BUARQUE

Já bem entrado era Agosto,
em passeio p’las tulherias,
o cheiro de flores e de mosto,
as crianças em correrias
até me engelhava o rosto
e alegrava o coração
e o cérebro, em comunhão.

Eis que encontrei o descartes
mais o chico da holanda
teclando com mozart
sem deixar passar a banda
que vinha do campo de marte
em animada conversa
sentados num tapete persa.

Empunhava o chico, viril,
uma enorme clave de sol,
como um símbolo do Brasil,
e gritava:

- “Eu sou o farol
do presidente operário fabril!
Sou o retrato em branco e preto,
da ópera do malandro, o libreto!”

- “Alto aí”, berra mozart, sustenido,
“que de óperas bem sei eu!
seja malandro ou bandido,
congressista ou filisteu,
ninguém merece apelido
de cefalópode molusco!

Ouve-se a voz cartesiana:
- “Verborreico e vermelhusco,
será, mas parem com essa chicana!
Há que atentar no percurso
da usina p’rá selva urbana!
Mudou com método o discurso
exaltado do sindicato,
e aprendeu economês!
mas tremei, oh povo ingrato,
Vão tê-lo lá outra vez!”


Abril 2009

quinta-feira, 11 de junho de 2009

SONETO EM MIM

Falar de quem? Pois... de mim!
Homem! Macho! Inteligente!
Senhor de brilhante mente,
Um poço d’encantos, enfim!

Trato as mulheres com desdém,
De boa figura, escorreito,
(mas trago um desgosto no peito,
tive que nascer d’uma mãe!)

Que perfeito ninguém é!
(conto seis dedos na mão
e não gosto de café!).

Tenho contudo um senão,
Não faço xixi de pé!
Oh meus deus! Qu’imperfeição!


Janeiro 2009

ROSAS CARMIM

rosas de cor,
versos quebrados,
sonhos alados,
botões em flor,
vidas cansadas em busca de amor.

versos quebrados
ligados por pouco,
razões de louco,
caminhos mudados,
vidas cansadas com rumos trocados.

sonhos alados,
desejo profundo
apertando o mundo,
crescem cuidados,
vidas cansadas com rumos trocados.

botões em flor,
princípio do fim,
rosas carmim,
sol sem calor,
vidas cansadas em busca de amor.


Janeiro 2009

MUDANÇA

um de nós tem que mudar

não para deixar de ser quem é
nem por missão ou omissão
nem por sacrifício
romântico altruísmo
ou pura abnegação

mas por amor

mesmo que a mudança
possa matar esse amor


Novembro 2008

quarta-feira, 10 de junho de 2009

OS LIVROS DA MINHA INFÂNCIA

as marcas sépias do tempo
nos livros da minha infância
são como luzes que se perdem
na distância do navio que se liberta do cais

os livros da minha infância
guardam sonhos de terras distantes,
de cavaleiros andantes
e poetas, jograis, cancioneiros,
de princesas e marinheiros
das barcas vicentinas
que dobravam bojadores,
e frades de negras batinas.

as marcas sépias do tempo
nos livros da minha infância
são o espelho das rugas
que desenham no meu rosto
os caminhos que percorri
desde que os li,

os livros da minha infância


Junho 2009

segunda-feira, 8 de junho de 2009

OS NOVOS HERÓIS

Chego
fechado na coragem do medo.

Construo
uma cerca de tradições.

Ergo
um muro de confusões.

Moro
n’ aldeia em plena cidade.

Gasto
a vida em terras alheias
de estranhos costumes
onde altos tapumes
escondem cadeias.

Emigro, imigro,
sonhos de estar e voltar.

Procuro
os amigos da terra
que a terra partilha
na solidão amarga
dispersa no nada.

Vem
gente do mar, gente da serra
gente das ilhas da maldição.

Troco
a saudade do nada que tinha,
mas sabia quem era!

Busco
o haver e esqueço o dever
de ser o que sou,
falsa quimera!

Perco-me
no meio, não sei onde estou.


Janeiro 2009

sexta-feira, 5 de junho de 2009

QUADRAS POPULARES ACERCA DE NADA

quando quero dizer nada
acabo dizendo tudo
o melhor é ficar mudo
manter a boca fechada

manter a boca fechada
tapa a porta à verborreia
previne a mental diarreia
impede à mosca a entrada

impede à mosca a entrada
e a outros bichos que tais
não dizer menos ou mais
quando quero dizer nada

quando quero dizer nada
é melhor ouvir que falar
baralhar, tornar a dar
manter a boca fechada

manter a boca fechada
para não fazer asneira
porque nem de brincadeira
devo dizer mais que nada



Março 2009

CONFIDÊNCIA

vou-vos contar um segredo

por vezes
poucas vezes
permito-me ter pena de mim

isso mesmo
ter pena de mim
lavar-me nas minhas lágrimas
curtir alguma mágoas
saborear um momento de infelicidade
lamber as próprias feridas
debochar na complacência

é um exercício perigoso
tal como uma droga
cria habituação e
se deixada sem controlo
ou se ultrapassada a prescrição
suga-nos para buracos negros
de gozo irresistível

ah, mas há lá prazer mais elevado
que rir de nós próprios

melhor que ter pena de mim
só o momento
aquele momento
em que me arrimo
em que me ganho
e grito ... basta!



Março 2009

A BARATA OCASIONAL

era um apartamento comum
daqueles a que nunca pertencemos
apenas por lá passamos
numa rua de qualquer nome
que desaguava na avenida do mar

edifício de esquina
belo e decadente
prenhe de história
qual velha senhora de rosto marcado
pelo tempo que esgaça
e descolora as baínhas
dos vestidos que se vestem e revestem

quarto sala e kitchenette
esgotavam o espaço útil

janela rasgada ao chão
debruçada para saguão comunal
trazia vozes e cânticos e choros
de pessoas de muitas falas e cores.

e as baratas
as baratas rodando as antenas nervosas
e a sua procura incessante
por recantos húmidos e poeirentos

não era a ocasional barata doméstica
eram filas de famílias de baratas
em contínuo e noturno movimento
sem metamorfoses kafkianas
eram apenas nojentas baratas
francesas de Nice.


Março 2009

O MONSTRO

Os pensamentos enleiam-se,
por vezes,
e procriam e crescem à volta do que foi,
no início,
um assomo singelo de ideia,
tão simples,
que quase não merece o nome
de ideia.

De uma ideia que era apenas isso,
uma sombra,
d’ ínfimo ponto flutuante no espaço
sináptico,
nasce e expande-se um monstro
emocional,
que nos rasga todos os resquícios
de sentido.

Por geométrico processo de agregação,
irracional,
e em tempo tão pouco que não tem medida
no tempo,
ocupa todo o nosso espaço vital,
abusivo,
e logo nos possui e manipula,
destruidor.

Num brutal espasmo de raiva
atávica,
olhos cegos e coração vazio
por desamor
distorce e conspurca o princípio
essencial
E morre no pântano frio
da solidão.


Março 2009

quinta-feira, 4 de junho de 2009

MELODRAMA MUSICAL

Maria: Lembras-te? Esta era a nossa música!

João: Lembro-me muito bem, como se fosse hoje!

Maria: Aqui para nós, aquilo é um tudo nada piegas,
não te parece?

João: Sim, realmente, ouvindo melhor,
é uma grande pepineira!

Maria: Pepineira também não diria,
um pouco piegas, pronto.

João: Isso dizes tu porque é aquele espanholito enjoado!

Maria: Espanholito enjoado? Romântico, é o que é!
E latino, não espanholito!

João: Sim, sim, gostaria de ver o que dirias
se fosse uma gaja bonita que cantasse!

Maria: E que não viessem os ciúmes à conversa!
Quero lá saber do Julio para alguma coisa.
Por acaso até é giro,
o homem, faz-me pensar em coisas boas!

João: Bem, a conversa já se está a estragar!
Vamos mudar de assunto.
Como é que estás com o teu novo marido, estás feliz?
Mais do que comigo?

Maria: Se estou feliz?
Olha, João, nem sei bem,
sabes que isso da felicidade é muito relativo.....
estou calma, isso sim, e eu precisava de calma.

João: Sim, mas mais feliz do que comigo?

Maria: Não insistas, João, é diferente,
por ti tive paixão, pelo Filipe tenho amor.
E, na minha idade, preciso mais de amor que de paixão.

João: Pronto,já entendi.
Mas diz-me só mais uma coisa:
já tens uma nova música?


Fevereiro 2009

RENASCER

era uma vez....
uma vez em que me veio,
irresistível,
uma vontade de me deitar,
como fazem os velhos,
era sábado
e o dia mal ia a meio.

senti, por inexplicável razão,
que o dia tinha acabado,
que tudo tinha acabado,
como se tivesse chegado ao fim de um livro.

uma estranha lassidão,
quase dormência,
dominava-me os movimentos.

os sons chegavam-me abafados
e até um repentino e irreal nevoeiro
caiu, intempestivo, sobre a cidade.

todo eu me queria abandonar ao estranho apelo

seria isto a antecâmara da morte?
assim uma espécie de anestesia?

mas eu não quero morrer!
gritou alguém... alguma coisa,
dentro de mim!

quero apenas mudar!
ou terei de morrer para mudar?

morrerei, então, para renascer.



Fevereiro 2009

MELODRAMA MULTICULTURAL

O homem que bateu no cão
que mordeu no gato
que comeu o rato
que roubou o queijo
do Manuel que não faz parte desta história.
.......

Assim mesmo, como em Drummond,
Começa o melodrama.


Maria: João, estou farta! Vou-te deixar!

João: Outra vez essa conversa? Podes começar a andar!

Maria: Oh João, é que não és tu, é o outro....

João: O outro? Qual outro?

Maria: O outro João, que és tu, às vezes!

João: Pronto! Agora é que estragaste tudo!
Tu tens outro homem? Outro João?

Maria: Arre! João, que além de careca és estúpido!

João: Deixa lá a minha careca,
se não começo a falar das tuas varizes!

Maria: Das minhas varizes?
Ah agora já não gostas!
Mas quando me quiseste levar p’ra cama
dizias que as minhas varizinhas
até pareciam o mapa hidrográfico do Brasil!
Nunca percebi isso,
mas achei que devia ser coisa bonita,
tu falas tanto das mulheres do Brasil!

João: Mulheres do Brasil?
Eu nem conheço nenhuma brasileira!
Bem, com a exceção da Creuza,
que me faz as unhas no barbeiro...
mas essa já é mais portuguesa que tu,
até canta o fado...

Maria: A Creuza canta o fado no barbeiro?
Explica lá isso bem explicadinho, Joãozinho!

João: Bem.... no barbeiro não,
canta é no bar do Petrecheque,
aquele meu colega ucraniano da construção
que te apresentei há dias.
Eu disse-te que ele explorava um centro cultural,
onde aos sábados à noite fazemos reuniões de trabalho.
Não tem nada de mal a Creuza animar as reuniões!

Maria: Creuza? Olha meu querido,
a Creuza durante a semana chama-se Joaquim,
é padeiro e vem-me trazer o pão todos os dias
depois de tu saíres p’ró trabalho!

João: A Creuza é o padeiro?
Bem, bem, bem ....oh Maria,
agora és tu que tens que explicar isso bem explicadinho!

.......................................

O melodrama continuou mais ou menos nestes termos
por cerca de 8 horas,
até o Joaquim/Creuza bater à porta
trazendo três baguettes frescas de tamanho respeitável
e dois brioches,
acompanhado/a do/a Petrecheque que,
aliás, também era Karina.
João e Maria, exaustos, confundidos e esfomeados,
não tendo já a menor ideia
de como teriam começado a discutir
nem de qual era afinal o tema da conversa,
decidiram tomar o pequeno almoço todos juntos,
refeição esta que se prolongou até às 5 da tarde.


Fevereiro 2009

O CLONE

pensei, pensei e cheguei à conclusão
que sou um clone da minha pessoa

porque é que se levantou a questão?

a resposta é tão simples que pode soar
a perturbação mental de quem não tem
outra coisa que fazer se não pensar.

não me lembro de ser criança!

por estranho que pareça,
sinto que nasci,
melhor dizendo, apareci,
com memórias implantadas e não vividas.

tive mãe, tive pai, disso recordo,
mas não me lembro, por exemplo,
de brinquedos ou de um beijo na face,
nem de ser castigado por infantis desacatos.

de certeza!

fui clonado de outro eu original!

mas então....
tem que haver outro eu!

ou será que sou eu o principal?



Janeiro 2009

A TERCEIRA VEZ QUE NASCI

a terceira vez que nasci

saí da barriga de um avião
a 10.000 metros de altitude
algures entre o velho e o novo mundo
no ano sem graça de 1988

como certos animais
o meu primeiro alimento
foi a gordura acumulada
durante os percalços
da minha vida anterior

nasci por obra e graça de mim próprio
sem mãe nem pai
nem berço nem láctea teta

as dores de parto prolongaram-se
durante a viagem,
discretas, silenciosas
não teve águas derramadas
nem cordão umbilical,
cortado rente à saída de lisboa.

após a aterragem
saí do aeroporto já pelo meu pé
e, qual tartaruga de ovo recém quebrado,
procurei o mar



ainda não voltei a nascer


Abril 2009

A SEGUNDA VEZ QUE NASCI

a segunda vez que nasci

corria o ano de sessenta e nove
e o mês era fevereiro,
por sinal o mais curto
do calendário gregoriano

talvez por desígnio papal,
aí pelos oito meses de criação
chegou-me uma ânsia ao peito fetal
e ala que se faz tarde,
decidi irromper do maternal útero
e assumir-me como gente.

desta vez nasci menina.

a minha pressa de nascer
era já sintoma genético
do que viria a ser
a minha forma de viver
sempre com pressa.

teria dois quilos de peso,
um pouco mais, talvez
mas uma fome gigante
que a cada par de horas
me fazia berrar
como se me estivessem a matar.

minha mãe sofreu, calculo,
nem um dia,
nem uma noite de descanso
meses atrás de meses
mas, afinal, ser mãe deve ser isso,
ser tudo ... ser mãe

e o meu pai?
agora que falei nisto
eu devia ter um pai
toda a gente tem um pai
não me recordo de o ter visto


a terceira vez que nasci .....


Março 2009

POEMA INACABADO

Queria escrever um poema inacabado.

Por razão nenhuma,
apenas para não ter que o acabar.

Começar é fácil!

Qualquer ideia,
qualquer palavra,
qualquer assomo de sentimento
ou relance introspectivo,
acorda a inspiração
e abre o fluxo criativo.

Depois ....
depois é como esculpir a pedra bruta.

Desenha a ideia global,
Deixa correr a pena,
Tira daqui,
Lasca d’ali.
Raspa acolá e pronto,
vamos aos acabamentos.

A métrica não acerta,
o ritmo está frouxo,
a mensagem não está lá,
ou está demais!
Ah, coisas de somenos!

Teremos todo o poema
e todo o tempo do mundo
para emendar,
cortar,
alterar,
remendar.

Agora faltaria terminar,
Se não fosse um poema inacabado.


Novembro 2008

SONETO DOCE

Goiabada, Rabanada,
Bola que é de Berlim,
Pastel de Belém e Quindim,
Arroz Doce e Tigelada

Bomba, Trufa, Camafeu,
Queijo com Marmelada,
Pão-de-Rala, Bananada,
E mais um Toucinho do Céu.

Fidalgo qu’é Dom Rodrigo,
Pão-de-Ló e Coscurão,
Baba de Camelo e Formigo.

Papos d’Anjo, Massapão,
Moscatel com Doce de Figo,
E uma Torta de Azeitão.


Novembro 2008

CONFESSION

I accuse irresponsibly,
I judge unwillingly,
I condemn unknowingly,
I execute blindlessly.

I live soullessly.



Outubro 2008

CLASSIFICADOS

Homem, aluga-se
pela melhor oferta.

Boa condição geral
devidamente certificada,
o cérebro em particular
usado com parcimónia.

Maduro quanto baste,
boa figura e fino trato,
especialmente treinado
para substituir marido
de menores atributos
em reuniões sociais ou de negócios.

Mestre em acupunctura
e pós-graduado em cultura Maya,
preparado para intervir
em temas de cariz
cultural ou científico,
ou para oferecer apenas
sorriso inteligente,
à vez misterioso e complacente.

Possui competências técnicas
nas áreas prosaicas do lar,
canaliza e electrifica,
pendura quadros e cortinas,
aspira, engoma, passaja.

Diploma de chef cuisinier,
prepara cocktails e sugere menus,
propõe vinhos e recebe convidados.

Procura casa compatível,
de famílias tradicionais,
sem filhos, se possível,
nem domésticos animais.


Outubro 2008

PROIBIDO SABER LER

Que bom o tempo em que só os monges,
alguns,
sabiam ler e escrever!

Aí sim,
o povo ignorante servia os berços-d’ouro,
morria nas suas guerras imperialistas
ou pseudo-religiosas
abençOadas pelos Papas
com promessas de graça eterna.

Pelo Natal e aniversários reais,
o senhor matava o porco
e oferecia à plebe as melhores partes,
patas e cabeças.

quando,
um aqui outro acolá,
o povo foi aprendendo as letras,
os problemas começaram
e a História reescreveu-se.

As populações organizaram-se,
reclamaram direitos,
cortaram uma ou outra cabeça coroada,
escreveram leis e,
oh tragédia,
perceberam que unidos seriam imbatíveis.

O caos instalou-se,
o mundo quase acabou!

Conceitos e práticas perigosas,
criminosas mesmo,
surgiram de mentes doentias,
como república,
democracia,
igualdade de oportunidades,
direito à educação,
entre outras patologias.

Abaixo os falsos deuses da cultura!

Acima o poder divino dos iluminados bem-nascidos!


Dezembro 2007

CONSUMISMO NATALINO

Consumismo é uma forma de cozer as frustrações
em banho-maria,
assim uma espécie de ansiolítico.

E enquanto nos dedicamos,
furiosamente,
a empenhar o futuro,
cumprimos carneiramente o presente.


Além disso,
ainda me incomoda mais o Natal
porque sou um guloso compulsivo.

Não há fatias douradas
nem coscurões
nem bolo-rei
nem filhós
nem arroz doce que me satisfaçam.

Mas as crianças ficam felizes
com as metralhadoras chinesas,
os tambores chineses,
os pianos eléctricos chineses
e os jogos de computador
"quanto mais sangue melhor"!

Felizes??
Entram mas é em processo de transformação genética
e desatam a rir quando vêem uma metralhadora real
a matar pessoas reais
em qualquer Burma real do planeta.


Mas temos a maior árvore de Natal da Europa!

Ah, isso está bem!

Consome toneladas de kilowatts,
é plástico,
e foi financiada com os lucros himalaianos de um Banco.

Mas nem tudo é estúpido,
consumista,
comercial,
balofo,
mentiroso,
anti-ecológico,
opiácio,
doentio
e pagão.

Há uma coisa que me derrete o coração:
as musiquinhas de Natal!!

Que é que querem?

Se me cantarem um Jingle Bells ao ouvido,
humedece-se-me os olhos;
com o Silent Night aperta-se-me a garganta;
as canções de igreja põem-me a chorar desalmadamente!

Vejam só:

O menino está dormindo
Nos braços de São José,
Os anjos Lhe estão cantando:
“Gloria tibi domine”.

"O Natal devia ser todos os Dias!",
in “Revista da União dos Comerciantes do Distrito de Lisboa”.



Dezembro 2007

ENCÓMIO CANINO

Cão não é gato.

De fato,
cão é quase gente,
mas não mente.

Também não é leão,
não.
Mas no essencial,
a coragem é igual.

Cão é de homem!
Já viu homem puxando gatinho pela trela?

Gato é de mulher!
Já viu mulher segurando mastim?

Tem assaltante em casa?
Cão enfrenta!
Gato?
Nem tenta!

Gato é companhia...
que mia.
Cão é muleta d’invisual!
Mas que animal!

Cão te adora.
Não te explora,
como gato egoísta e maltês
que já fugiu outra vez!

Meu cão meu amigo.


Novembro 2007

VIDA DE CÃO

Sou um cão.

Ou melhor, penso que sou um cão.

E o meu nome é Cão.

Eu sei que é redundante e pouco criativo,
mas o que é que querem,
são coisas do meu dono.

Dizia ele que era a única forma
de não se esquecer do meu nome.

Ele não é má pessoa,
isto é,
para humano,
não é?

Que os critérios de julgamento serão certamente diferentes,
de canídeo para pessoa mas,
se esquecermos o seu aspecto exterior algo repelente,
a sua fragilidade física,
os dentes de pôr e tirar
e a quase total ausência de pelagem
– excepção feita ao ridículo apêndice capilar
que usa entre o lábio superior e o nariz –
tenho que admitir que já vi donos piores.

Não me falta com comida,
ainda que ultimamente venha a abusar da ração seca.
Água à descrição,
cama e almofada lavada.

Pelo calendário do meu dono,
já tenho 1 ano e meio,
um macho (acho que sou macho) adulto
na primavera da vida.

É precisamente este assunto que me traz preocupado.

Aqui há pouco menos de um ano,
o meu dono levou-me ao médico.
A que propósito, não sei.
Sei que um homem enorme
me segurou em cima de uma mesa,
açaimaram-me de forma humilhante
e injectaram-me um líquido numa coxa traseira.
Quase de imediato,
o corpo perdeu a sensibilidade
e depois a consciência total.

Acordei no carro do meu dono,
nauseado e com uma ligeira dor na região abdominal.

Passei dois dias deitado no meu tapete,
água pouca,
comida nenhuma.

Ao terceiro dia,
senti vontade de apanhar um pouco de ar fresco,
cheirar umas árvores,
ladrar aos pássaros.

Alguma coisa aconteceu.
Não me apeteceu cheirar as habituais partes da cadela da vizinha
e o som do meu latido
parecia mais de um gato envergonhado.

Sou um macho, acho.


Outubro 2007

EU SOU UM TÉNI

Eu sou um téni e estou preocupado com o meu futuro.

E tenho boas razões para estar preocupado.

Acabei de sofrer um terrível e mortal acidente de trabalho.

A minha sola,
melhor dito,
o meu piso,
pois de sola não tem nada,
é pura borracha sintética indonésia,
descolou-se e quase se separou do corpo
quando o meu dono pontapeou fortemente
uma bola molhada.

Nem sei como,
ironias inexplicáveis do futebol,
o remate saiu em arco,
com efeito imparável
e marcou um soberbo e aplaudido golo.

Mas voltando à preocupação pelo meu futuro,
pergunto-me:
para que é que serve um par de ténis que já não é par?

Os ténis,
como as freiras e os polícias,
devem andar aos pares!

Oh minha Adideusa,
Deusa dos Ténis,
já oiço os passos do meu dono!!

Agarra-me fortemente,
como se eu pudesse fugir sozinho e,
estranhíssimo,
atira-me ao ar gritando estridentemente
de tal forma que,
se ouvidos tivesse,
surdo teria ficado,
assim um som de índio americano,
algo como iupiiiiii.

Perdi a consciência num vórtice de terror
em que já me sentia jogado em lixeira malcheirosa
rodeado de alfaces fermentadas,
fraldas recheadas,
seringas ensanguentadas,
limões podres e outras imundices.

Volto a mim,
abro a medo os olhais vazios
por onde corriam habitualmente os atacadores e,
qual o meu espanto,
vejo-me colocado numa prateleira
no escritório do meu dono,
em local de destaque!

Pendurada ao peito,
tinham-me colocado uma placa que dizia:

“Téni amigo, jamais te esquecerei –
Final do Campeonato de Futebol Inter-Escolas, 2006”


Setembro 2007

A MINHA MÃE

A minha rua é mais bonita que a tua!
dizia eu, teria aí uns 5 ou 6 anos.

Como a minha mãe... também é mais bonita que a tua!

O meu pai? Ah, esse não sei, nunca conheci.

Dizem-me que morreu cedo.
De umas vezes, de acidente nunca definido.
De outras, de morte natural, que se teria ficado a dormir.
De outras ainda,
esquecidas as anteriores versões,
de doença grave com grande sofrimento.

Como se me interessasse a causa da morte
ou qual a mais elaborada mentira!

Porque eu sabia, de saber seguro,
daquele que vem de dentro e não carece de prova,
sabia porque sabia e pronto!
que o meu pai estava vivo e se recomendava.
Bem, hoje já poderá não estar vivo,
não sei nem me interessa,
mas que esteve bem vivo muitos e bons anos,
lá isso esteve.
Longe de mim,
em qualquer lugar,
com qualquer pessoa que não era a minha mãe,
certamente feliz.

Talvez se lembrasse, não sei,
nas ocasiões do costume,
natais e aniversários,
do filho que teria semeado e se estava fazendo homem,
talvez.

Não que o meu pai me fizesse alguma falta!
Só faz falta quem está,
dizia a minha mãe, com excessiva convicção.
E eu concordava,
pois a minha mãe,
a mãe mais bonita do mundo,
era minha mãe e meu pai,
oferecia-me a sua vida para que eu viesse a ter vida.

E tanto me deu que a sua vida se esgotou em mim.

Como as flores, começou a murchar e,
num dia igual aos outros,
teria eu os meus doze anos,
secou e morreu,
a minha mãe.


Agosto 2007

VIAGENS DE ELEVADOR

Na verdade, era um simples quinto andar.
Mas experimentem subir e descer,
descer e subir,
todo o santo dia,
mês após mês,
ano após ano,
sem direito a folgas, férias ou salário mínimo,
qual imigrante em empresa de construção!

Até as obrigações descritas em belo cursivo
na tabela de manutenção
eram sovinamente cumpridas,
um pingo de óleo este mês,
um aperto de porcas no próximo,
quando não se ficava por um experto olhar
de está-tudo-bem!

Que sim, senhor,
que também tinha alguns, poucos,
pequenos momentos de felicidade
que me eram trazidos pela visita ocasional
do senhor inspector da qualidade-dos-elevadores.

Mas mesmo estes foram rareando
até desaparecerem por completo
depois de uma conversa de cavalheiros,
que de cavalheiros pouco tinham,
que teve lugar aqui dentro
entre o senhor inspector e o empreiteiro,
em viagem do rés-do-chão para o sexto andar
onde se situava a casa da máquina.
Das vergonhas que ouvi,
ali junto dos meus botões,
como se eu não existisse,
guardarei prudente silêncio.

Pois, por falar em vergonhas,
fiquem os leitores sabendo
que não foram as únicas que me passaram pelo interior!
Nem as maiores!

A vida de qualquer elevador,
mesmo de modesto prédio
habitado por modestas gentes,
daria um filme de prémio assegurado
em qualquer festival digno desse nome.
Cenas de comédia, de tragédia,
de uma, duas e três bolinhas vermelhas.

Ainda ontem!
Então não é que a gorda do 5º esquerdo
resolveu urinar no meu tapete
só para poder acusar a cadela rafeira
dos vizinhos do 4º esquerdo que,
ora não a deixa dormir,
ora traz pulgas para o prédio.
Pulgas! Pulgas traz o canalizador que,
semana sim semana não,
lhe vai tratar da canalização!
Canalizador, claro, e eu sou um Jumbo 747!

E os àvontades do senhor Oliveira do 5º direito
que tresanda a Old Spice
com a senhora das limpezas do 3º esquerdo?
Ainda no domingo passado,
à hora da Missa,
lá vai ela direitinha ao 5º andar.
O cheiro a Old Spice que ela trazia
quando voltou meia hora mais tarde,
até me embaciou o espelho.

E mais, muitas mais histórias teria para contar.
O que as pessoas fazem
quando se fecham na privacidade do elevador,
valhamedeus,
limpam os dentes com as unhas,
experimentam sorrisos,
compõem decotes,
libertam arrotos e borborigmos,
soltam flatulências,
ajeitam as gravatas no pescoço
e as cuecas no rabo,
cheiram-se nos sovacos.

Mas o meu tempo e a minha história acabaram.
Estou, dizem, fora de prazo.
Imaginem, como se fosse um iogurte!

Vou ser substituído
por uma daquelas horrorosas caixas de aço,
com luzes embutidas no tecto
e porta automática com sensor electrónico
e música ambiente.

As histórias que se gravaram
nas minhas madeiras a que chamavam exóticas
(pinho folheado, era o que era!),
morrerão em qualquer fogueira de sem-abrigo.


Abril 2007

TERRA

Aquela terra tinha um estranho nome,
como estranhas eram as pessoas que lá viviam.

Mas o que é um nome, afinal?

Uma identidade, dirão.

E dirão mais, que uma identidade, como um nome,
tem que nos identificar
e nós temos que nos identificar com ela.

Aquela terra chamava-se Terra.

Mas as pessoas que habitavam em Terra gostavam da terra.

Gostavam por ser simples mas profunda,
porque dava muito e pedia pouco.

Gostavam das suas cores, dos seus cheiros, disto e daquilo.

Terra era uma terra pródiga,
que dava sem ver a quem,
e dava porque era assim a sua natureza.
Os habitantes de Terra,
como seus filhos que eram,
viviam apenas da terra.

Um dia, sem avisar, a terra secou e morreu.

E Terra morreu com ela.


Março 2007

A DONA NOÉLIA

A D. Noélia caiu direitinha do 10º andar para o piso térreo.

Não desceu pelas escadas nem tomou o elevador.

Nem saiu pela porta do prédio de apartamentos.

Saltou pela janela.

A D.Noélia não sabia voar.

E não sabia que não sabia voar.

Infelizmente esborrachou-se nas pedras do passeio.

O prédio era dos anos 50 e tinha a fachada revestida
com aqueles pequeninos mosaicos vidrados
muito bons de lavar.

Ainda bem que tinha aqueles mosaicos vidrados,
pois assim foi fácil lavar os restos da D. Noélia
que não sabia voar.



Janeiro 2007

segunda-feira, 1 de junho de 2009

POR CAUSAS


POR CAUSAS


A vida vivida por causas
foi sacrificada ao altar
das vidas entre as pausas da novela do jantar.

Não há causa que me arraste
para além das seis da tarde.

Não há desafio que me afaste
da defesa intransigente de nada fazer na vida.

Tenho pena dessa gente
que sofre, desprotegida, até acendo velas por eles.

Mas que posso eu fazer?

Os deuses nunca se enganam
nem castigam por prazer
e é por isso que se danam as almas nas profundezas!

Redimem pecados, malvadezas,
que carecem ser expiados
por anos de padecência.

Voltarão a conviver,
sob a lei da obediência,
e assim não ter que pagar para outra vez poder ver
a novela do jantar!