quarta-feira, 16 de março de 2011

EM PENSAMENTO

Hoje fui a Belém, em pensamento,
e voltei pela vigésima-sexta hora,
ainda a tempo de escrever três poemas vazios
mais um naco de prosa sobre coisa nenhuma,
em pensamento.

Lá para meio do caminho, em pensamento,
colhi uma mão cheia de poeira
do último anel de Saturno
e com ela, em pensamento, construí
um obelisco à minha pessoa.

Na realidade, este é o meu sonho,
ter um obelisco bem alto e pontudo
com o meu nome escrito em tipo garamond
pintado a folha de ouro que, na realidade,
eternizasse as boas obras que não fiz,
os livros que não escrevi
mais tudo o que deixei por fazer.

Na realidade, não há nada que,
em pensamento, não tenha feito,
vitória que não tenha obtido,
combate que não tenha ganho.
Na realidade, em pensamento a realidade
escreve-se com pau de giz em quadro preto
que se apaga e rescreve
ao sabor do pensamento.

Realmente, quando penso no assunto,
eu sei, em pensamento,
que a realidade não é mais
que um filho indesejado
de um pensamento inconcebível.
Penso eu.

A CIGARRA E O NESPRESSO

Chegou o grande momento
de pedir em casamento
a mulher com quem sonhava
e perdidamente amava
desde os tempos de criança.

Tão grande foi a festança,
tanto comi e bebi
que totalmente esqueci
as minhas obrigações!

Rezei vinte e uma orações
à divina Providência
a quem pedi sapiência
p’ra entender que o meu fado
tinha o caminho traçado
no tom maior da guitarra!

Meu destino é ser cigarra
seguir à deriva p’la vida
sem ter termo nem medida.

Mascar chiclete de figo
e beber com um amigo
um nespresso ristretto,
dormir à noite sem teto
fazer amor com a lua
e bailar de roda na rua.

Escrever mil versos por mês
recriando em português
a memória do luso império
e acabar, enfim, no cemitério
sem arrependimento nem dor
sem glória nem temor.

MEIA VIDA

já passei o meio da vida

ontem,
vogava ao sabor dos ventos
e das vontades de forças
que não via nem percebia.
inelutáveis e insidiosas
traçavam-me rotas ambíguas
desenhadas por ambições
de juvenil afirmação
em que o hoje era o limite do futuro.

hoje,
navego as ondas do destino,
marcando o rumo
com o orgulho de quem colheu
o saber da experiência vivida
e pode, finalmente, pisar
os caminhos que quer trilhar
livre para poder escolher.

amanhã,
amanhã é dia de promessas,
todo o dia é ano novo,
vida que recomeça, nova,
como se a vida renascesse sempre
a partir do dia seguinte
prometo viver cada dia
como se não houvesse amanhã

LUANDA revisitada

Luanda enleia-me o pensamento
perturba-me o raciocínio.
quero ser objetivo, analítico,
mas a semente emocional brota,
erva daninha inelutável,
adoçando as ideias
e amolecendo o coração.

Luanda não é estatística,
não se expõe, transparente,
à leitura dos indicadores habituais
ou ao raio X maniqueísta e simplório
do bom ou do mau.

Luanda é organismo complexo
onde predadores internacionais
se conluem com lobos locais
à mesa dos novos colonialismos
brancos e rubro-negros

Luanda é filha tardia
de séculos de portuguesismo
abafante e retrógrado
enfeitado aqui e ali
por palmada nas costas
e falso trato porreiro,
que criou um país negro de matriz branca
de onde os brancos tardaram a sair
e os negros tardaram a entrar.

Luanda sofreu e quase morreu
de décadas de morticínio fratricida
que fraturaram a terra e
deixaram uma herança
de tribalismo não resolvido
por uma consciência nacional
que germina, lenta lenta
em morno processo de construção.

E Luanda afoga-se em petróleo,
ouro negro de sangue,
abençoado petróleo,
malvado petróleo,
presente envenenado dos deuses,
que cravou suas garras no coração angolano
e sorve, insaciável,
a seiva vital de um povo
de novo escravizado pelo sonho
do rolex de ouro maciço
da griffe europeia
ou da quinquilharia chinesa

A Luanda chinesa dos casinos
ou a Luanda do Dubai na baía
insultam a dignidade eterna
dos embondeiros que africanizam
os condomínios brancos de Talatona.

Que os embondeiros não morram
para que os mais velhos não morram
e contem histórias antigas
dos deuses antigos de S. Paulo de Luanda.

TÉDIO

tudo isto é um tédio

viver é uma maçada
respirar é um esforço
comer, beber, que cansaço

para quê?
para viver mais?
para prolongar o tempo
que se arrasta a passar
e assistir a mais atos,
vistos e revistos,
da comédia bufa,
quando não grotesca,
que é a vida?

Ler as notícias prefabricadas
de acontecimentos previsíveis
questiono-me se vale a pena

talvez o poeta tenha razão
talvez a minha alma,
de tão pequena,
não tenha suportado o peso
de ser eternidade
e me tenha deixado seco e oco
em que o passado, o presente e o futuro
se atropelam numa confusão dimensional
que deforma a realidade
e confunde o ser que sou
com o ser que penso ser.

mas é imperativo viver,
definir objetivos, ser feliz
contentar a família e os amigos e os vizinhos
perseguir um ideal
contentar contentar,
morrer parece mal

Ó CRISTIANO - cantiga de escárnio e maldizer

Cospe com raça altaneira,
coça forte a tomateira,
expulsa o ranho do nariz!
Lá se quebrou o verniz!

Exibe o alvo traseiro
p’ró público, que cavalheiro!
E estica-lhe o dedo do meio!
Cristiano, que gesto feio!

Ronaldinho, dá-me o Ferrari
Qu’eu não deixo derrapari!
E já agora a namorada
pois tu não a queres p’ra nada!

Dar palminhas carinhosas
nas bundas gloriosas
dos colegas, é mau gosto!
Ó Ronaldo, que desgosto!

No balneário, atenção!
É sítio de perdição
para um jovem milionário!
Não vás ao confessionário!

Desejo-te muita saúde
e espero ver-te amiúde
jogando bom futebol,
seja português ou espanhol,
só espero que te dê pica
para vires jogar no Benfica!