domingo, 28 de março de 2010

APOLOGIA DA FORMA

Acompanho com curiosidade,
algo mórbida, confesso,
um fenómeno marcante dos tempos atuais,
o primado da forma sobre o conteúdo.

Uma ideia, qualquer ideia,
vale pela qualidade da sua expressão,
independentemente do seu conteúdo.

Uma má ideia, cuidadosamente vestida,
cosmetizada e bem vendida,
passa a brilhante referência intelectual

Uma boa ideia, pobremente apresentada,
torna-se fugaz , incorpórea,
e morre no pó dos arquivos descontinuados.

A arte de dourar um conteúdo
medíocre na sua origem,
um político, um sentimento
ou um simples prato de comida,
por forma a que o ávido consumidor
o veja como um ideal de representação
ou uma refinada essencialidade,
é, sem sombra de dúvida,
o mais fiel retrato da fragilidade
e do nanismo espiritual do homem moderno.

Tudo se toma pelo seu valor facial,
não cabendo à dimensão intrínseca das coisas
mais que papel menor ou meramente decorativo
no teatro da vida moderna.

Vivem-se tempos de ser o que se parece
mesmo que se pareça o que se não é.

Ganhou a mulher de César
que hoje lhe basta parecer
sem ter o trabalho de ser.

De tal forma que a forma,
antes chamada acessório,
ganhou vida própria e substantivou-se,
defenestrando de vez o conteúdo.

Março 2010

quarta-feira, 24 de março de 2010

O VINHO - Quadras ao sabor popular

Branco, tinto ou rosé,
vinho velho, vinho novo,
pleno de corpo e bouquet,
és a alma do meu povo.

És o anjo inspirador
do poeta ou trovador
e lhe faz corar o rosto
de escarlate, como o mosto.

O vinho faz-me cantar,
faz-me chorar e sorrir,
faz a minh’alma florir
e o pensamento voar.

Com borbulhas ou sem elas,
o vinho é como o amor,
bebe-se à luz das velas
e desde manhã ao sol pôr.

O vinho solta-me a língua
e alegra-me o coração,
nunca morrerei à míngua
se tiver um copo na mão.

Mas é bom nunca esquecer,
jamais a razão perder
que a mente fica confusa!
Se vai beber … não conduza!

Março 2010

segunda-feira, 22 de março de 2010

REFLEXÕES DE EPAMINONDAS

A GRUTA
I
epaminondas terminou a obra
a que dedicara os melhores anos da sua vida,
a reconstrução de Tebas.
decidiu então recolheu-se a uma gruta,
espartana como convém, para meditar,
jejuar de guerras e outros prazeres carnais
e fazer contas ao passado com olhos de presente.
II
epaminondas sabia que esse processo
de contabilidade psicanalítica
não passaria de exercício aritmético viciado
em que o resultado era previamente conhecido.
pois não é, cada um de nós, no presente,
a soma algébrica dos deves e dos haveres
acumulados ao longo dos tempos passados?
III
epaminondas sabia, pois era homem
de extenso saber de experiências feito,
que ponderada a importância de cada ato
ou desato mais ou menos intencional,
por coeficiente que refletisse o seu peso
no desenvolvimento dos presentes futuros,
depois somasse e subtraísse as variáveis,
inapelavelmente surgiria o rosto familiar
do personagem que integra o eu-atual de cada um.

A QUESTÃO
IV
epaminondas sabia que o verbo inicial
e detonador de todo o pensamento,
teria que sair da fatal questão:
“ah se eu pudesse mudar o passado…..”
e que afirmariam uns:
“eu não mudaria uma linha!”
e que clamariam outros:
“sim, há coisas que …. talvez…”
onde cada posição denuncia
uma forma diferente de cada um atravessar a vida
e de se relacionar dentro do caldo cultural dos humanos.
V
epaminondas sabia ainda, por simples empirismo,
que os deuses não tinham criado os homens iguais,
fosse por lamentável e imperdoável incúria divina,
fosse porque os deuses já teriam antecipado que
a criação do homem não seria obra prima
nem digna sequer de menção honrosa.
em qualquer dos casos, tudo deixava adivinhar,
como aliás os testamentos da história
(os velhos, os novos ou os contemporâneos)
se encarregaram de demonstrar à exaustão,
que a criação do homem seria um ato falhado dos deuses.
VI
epaminondas inferiu assim, logicamente,
que dessa inconsistência do barro genético
resultaria que nem todos os homens aprenderiam
à mesma velocidade, havendo mesmo
muitos a quem essa capacidade seria negada.

APRENDIZAGEM
VII
epaminondas não sabia, nem poderia sabê-lo,
pois os deuses mantinham o poder de adivinhação
restrito aos limites olímpicos e a uns poucos oráculos,
que os homens que não aprendem
se multiplicariam mais depressa que os outros
e que, assim, em escassos séculos,
a terra seria deles, dos homens que não aprendem!
VIII
dos homens que aprendiam,
reza a tradição popular
que se agregaram nas academias
e outras instituições de diversão e recreio
onde afincadamente produziam saber
que a ninguém interessava nem ninguém entendia,
enquanto os homens que não aprendiam
cogitavam na melhor e mais expedita forma
de repetir os erros do passado,
entronizando-se na passerelle das paradas militares,
eternizando-se em bustos de mármore
ou cunhando-se em anversos de moeda corrente.
IX
epaminondas, fatigado de meditar, adormeceu,
e passaram, assim, quase três mil anos
em que o tebano general e pensador,
não tendo pedido a ninguém que o acordasse
(ninguém se atreveria a fazê-lo sem expressa ordem!),
mais não fez que dormir o sono justo dos heróis.

ATO FALHADO
X
nada de mais entretanto acontecera.
os piores receios dos deuses confirmaram-se,
ou não fossem eles deuses.
os homens nunca mais se recompuseram
dos maus tratos de que foram vítimas
por parte do pai criador,
particularmente a expulsão da casa paterna
como castigo desmesurado por mero pecadilho
de juventude entregue a si própria.
XI
epaminondas acordou finalmente
do reparador sono de quase três milénios.
tomou um duche rápido e encomendou
um croissant, um sumo de laranja
e um café curto bem forte.
XII
ligou o laptop e conectou-se em banda larga,
correu os olhos pelos emails
e concentrou-se na leitura do Financial Times.
crises financeiras, greves e despedimentos,
tremor de terra aqui, inundação ali,
incontáveis conflitos armados de dimensões
e violência para todos os gostos e paladares,
enfim, o trivial, nada, afinal, que o grego não tivesse
já visto e revisto ao longo da sua vetusta idade.

O CIRCO
XIII
uma coisa, contudo, deixou epaminondas perplexo,
se não mortalmente desiludido!
mesmo sabendo ele que os homens não aprendem,
esperaria o general que o sistema de
convivência que tinha sido inventado
no tempo da sua juventude e a que os seus
compatriotas chamaram democracia
se tivesse espalhado pelas terras do planeta
e fosse prática comum entre os homens.
XIV
passados três mil anos, o sistema
era totalmente desconhecido
da larga maior parte dos poderes vigentes
ou, na melhor das hipóteses,
permanecia em fase experimental
nos raros locais onde era utilizado.

EPÍLOGO
XV
O choque foi demasiado grande
e epaminondas entrou em depressão profunda.
fez terapia de grupo durante 3 anos,
assumiu a sua secreta filiação maçónica
e entrou para a ordem dos monges de Cister,
tendo dedicado o resto da sua vida
ao cultivo de vegetais hidropónicos
e à produção de geleias e compotas.

O tempo envelhece e os homens não aprendem.


Março 2010