terça-feira, 19 de maio de 2009

QUINTILHAS A PROPÓSITO


I
lá vem o profeta arrivista,
sacerdote sacripanta,
nepotista, narcisista,
pescador de água santa,
assanhado catequista

ii
desde o estigma batismal
da ungitura batista,
a figura clerical
todos encanta e conquista
com bolachas de água e sal

iii
arreado de mirra e ouro,
bate três vezes no peito,
esconjura o mau agouro.
acena ao rebanho com jeito
e som gregoriano em coro.

iv
corre o crente timorato
aos mega saldos de bulas
e perdões ao desbarato
p’rás luxúrias, iras e gulas,
enchendo o cofre beato

v
flagela-se com fervor
o pagador de promessas
ao magno inquisitor.
oh abades e abadessas,
revoltai-vos, por favor!


Maio 2009

quinta-feira, 14 de maio de 2009

CRETA REVISITADA

I
o mar morno mediterrânico
renasce nas mesmas pedras,
agora feroz,
logo lânguido,
século após século
a perder de vista
no poço profundo da história
da ilha de creta.

II
ameias, guaritas,
torres e palácios,
tijolos empilhados
com preceito castrense,
marcam a paisagem,
preservam as fronteiras do tempo
e guardam os segredos de cnossos
na ilha de creta.

III
em dia de sol ouvi
o roçagar das asas de ícaro,
filho de dédalo,
sobrevoando o labirinto
e vi o bastardo minotauro
morrendo à espada de teseu
que não amava ariadne,
na ilha de creta.

IV
sob a porta dos leões
escutei os contos de homero
que exaltavam agamenon,
rei de micenas
das muralhas ciclópicas,
protegido de poseidon,
deus dos mares e das terras
da ilha de creta.

V
ressoavam nas pedras
as patas dos cavalos otomanos,
cruzam-se cimitarras serracenas
com lanças de cruzados hospitalares
e punhais venezianos
em roubos, pilhagens e morte,
corre sangue bizantino nas ruas
da ilha de creta.


Abril 2009

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O BIGUE BANGUE

Dizem que nascemos d’um bigue bangue!
Então não somos filhos de Deus?
Oh pecadores! Ooh filisteus!

Chamam-lhe agora de efeito doppler
ou coisas que tais da física quântica!
Que disparate! É tudo semântica!

E o biguebangue, quem fez?
Caiu do céu, aos trambolhões?
Ah, calei-vos! já não tendes opiniões?

Já sei! Foi outro bangue que, qual espoleta,
fez explodir o nada com força galática,
criando o mundo em progressão matemática!

Mas outra vez, voltamos ao mesmo.
E desse bangue, quem foi o autor?
Da alma vem a resposta: o Criador!

Atentai, pois, tresmalhadas ovelhas,
A fé responde ao que a ciência ignora,
lede a Bíblia, o Corão ou a Tora.
...........................................................

Não nos treme o coração, oh mensageiro!
Não somos papistas nem judeus!
Somos ateus, graças a Deus!


Janeiro 2009

MANDEI VIR UMA PIZZA

era um dia daqueles dias
em que me sentia bem demais....

por nada em particular,
o espírito, corria-lhe bem a vida,
o corpo cumprindo funções vitais
sem precalços de maior,
contas pagas, geladeira abastecida.

talvez fosse isso mesmo,
o sindroma da sonolência segura da auto-estrada
....................................

tinha amigos para jantar.
seriam cinco, comigo, os comensais.
não era problema, a ementa,
vou mandar vir uma pizza, ou mais.

vinho branco, tinto e cerveja
é tudo o que se deseja num encontro
em que poetas e outros pintores
se juntam pra resolver as dores
dos problemas do mundo.

deixem que vos apresente os convivas:

a adriana renascida, ainda lambia a ferida
de uma viagem perdida à terra da inocência;

o rodrigo metafórico, vinha a entrar,
eufórico, por ter convencido um padre a casar;

a nina, que escreve bem ou mal,
conforme os gostos,
chegou curando os desgostos da sua opção rural

o carlos, de carcavelos, que é mestre em duelos
poéticos e aplicadas engenharias

e, por fim, o santiago, que anfitria a reunião,
ainda procura a razão porque queria ser actor.

conversa puxa conversa,
que sim senhora, que não senhor,
prosa puxa poema,
rima que rima,
e assim se concluíu que a culpa é do sistema!

“só lá vai com um bota-abaixo!”
uivava o rodrigo, umbigo fremente!

“que não”, murmurava adriana,
ainda em postura de lótus,
“há que respeitar as diferenças,
olhem só os homozigotus!”

recostado na poltrona,
olhos meio-adormecidos,
dizia o carlos, convicto:
“estamos é todos fodidos!
isto já não vai com mezinhas nem missa dominical,
só porrada nos políticos e uma limpeza geral!”

“tou nessa!” gritava a nina, “carago!
quem fala assim não é gago
e vamos mas é ao qu’interessa!”
..................................................

ergue o santiago a voz, então,
e com um gesto largo da mão,
diz “meus amigos, camaradas de letras
e outras artes variadas,
bate-nos à porta a polícia chamada pelo vizinho!
a vossa missão foi cumprida!
a pizza já foi comida
mais a caixa de cerveja e três garrafas de vinho.


Fevereiro 2009

NÃO HÁ DIA

Não há dia que passe
Nem noite que não acabe
Sem que pense em ti.

Não há hora que se esgote
Ou tempo de qualquer tempo
Sempre que penso em ti.

Não há terra não há mar
Nem sítio de qualquer mundo
Onde não pense em ti.

Contra deuses, contra homens,
Mesmo para além da morte,
Não deixo de pensar em ti.


Novembro 2008

A MENINA QUE COMIA VERSOS

Que gorda que era a menina!

Não era redonda, nem forte,
nem eufemisticamente cheia,
muito mais grossa que fina.

Era gorda mesmo, qual baleia!

Comia a vida e a morte,
comia de dia e de noite,
por gula, apetite ou deleite
de tudo, tudo comia!
De tudo... salvo seja!,
desde que fosse poesia!

Não questionava o género,
fosse didático ou lírico,
fosse épico ou satírico,
tudo comia sem mastigar!

Mais seria de admirar
que a métrica a incomodasse!
No que toca a silabar,
ao menos um pentassílabo!,
– diria a quem perguntasse.
Mas para a fazer salivar,
um rijo dodecassílabo!

Quanto à música poética,
versos duros, cacofônicos,
versos soltos, sibilantes
de todos, os homofônicos
eram os mais irrelevantes.

Sobre as estrofes, a estética
em nada a preocupava,
fosse um soneto ou uma décima,
um rondó ou uma sextina
de forma igual tudo amava.

Na definição dos temas, porém,
desenvolveu uma alergia,
depois de odes ou madrigais,
não lhe assenta muito bem
éclogas, sátiras ou elegias.

Acrósticos ou pastorais
têm problemas semânticos,
não se podem misturar
com hinos, salmos ou cânticos.

Já nénias e epicédios,
ditirambos, epigramas,
é de comer até fartar.

Não obstante os remédios,
triste fim tem esta rábula,
acabou mal a menina,
foi morrer de falta de ar
entupida por uma fábula.


Novembro 2008

A BESTA

Rasgado o hímen social,
quebrada a redoma cultural,
emerso o atávico medo,
surge a besta-homem
em todo o seu
repugnante esplendor.


Novembro 2008

AS PORTAS

Não importa
que uma Porta se feche,
o que importa
é que outra Porta se abra.

É isso, a Vida,
uma sucessão de Portas
que se abrem e fecham
umas para as outras,
sempre para a frente,
frente com costas,
frente com costas.

As Portas ...
nunca se abrem para trás!

Sempre para a frente,
até à última Porta.


Julho 2008

O PÕESSAJEITO

O seu nome de baptismo era António de S. Tomé.
Não se lhe conhecia pai nem mãe.

A graça de António foi obra do padre da freguesia de quem,
diziam as más línguas,
mais pai que padre,
fervoroso admirador do santo do mesmo nome.

O calendário litúrgico marcou-lhe o dia do baptismo
e emprestou-lhe o apelido.

Pena foi que alguma santidade
não tivesse encontrado osmose para o miúdo
que nesta altura ainda era António.
Sim, porque tempranito se lhe mostrou o carácter,
ou a falta dele.

Logo na creche onde se criou,
aprendeu a puxar o muco nasal
para o prato do colega mais próximo
e sabotava com mestria os brinquedos
apontando outro como autor.

Cedo dominou a arte da queixinha,
a troco de bolacha Maria ou outros favores.

Talentoso mentiroso,
desde cedo se tornou lusito brilhante na Mocidade Portuguesa
e legionário dedicado ao serviço da causa nacional
e da sua própria.

Logo que começaram a soprar
os primeiros ventos de mudança,
aderiu à juventude partidária
estrategicamente colocada à esquerda encostada ao centro.

Cursou Direito,
que algum conhecimento de leis,
mesmo mediocremente obtido por cópia e cábula,
pode vir a jeito.

Mas não se pense que é fácil
e isenta de escolhos a vida destes Antónios.
O sucesso é reservado apenas
aos que verdadeiramente se aplicam de alma e coração.
Desde logo,
vendendo a alma a quem mais por ela der.
Depois, remetendo o coração
às suas mais mesquinhas físicas funções,
proibindo-lhe radicalmente qualquer devaneio sentimental.
Quanto à coluna vertebral,
impõe-se-lhe intensa ginástica
até que a sua ridícula rigidez óssea
se transforme em maleável tecido cartilagíneo,
permitindo ao seu dono
assumir a posição mais adequada a cada situação.

Tornou-se rapidamente homem de mão de todo o chefe,
presente ou potencial,
muleta indispensável aos escalões superiores da hierarquia.

De tal forma se especializou na função
que o seu nome cedo se enriqueceu,
sendo Dr. António para cima
e Pôessajeito para o lado e para baixo.

A passagem pela modesta mas selectiva militância partidária
rendeu os frutos esperados
e a breve trecho se abriu atapetado caminho
em obscuro gabinete de ministro influente.

A prevista vitória do partido
premiou-o com assessoria de gabinete e secretária
por esforçados serviços prestados,
cumulado pela integração nos quadros da função pública.

Os tempos correram,
ministros que sairam,
outros que entraram,
e a todos o nosso Põessajeito dava jeito.

O seu inegável talento
era por todos reconhecido e por todos louvado.
E profusamente utilizado,
à esquerda, à direita e ao meio.

Mas a estrela do Põessageito arrefecia.

Outro põessajeito,
rival do Dr. António,
mais novo e mais letrado,
cometeu a suprema indelicadeza,
a miserável falta de ética carreirista,
de denunciar insignificante erro administrativo
na atribuição de fundos comunitários,
dos quais parte foi depositada
por mão mal intencionada
nas conta bancárias do Dr. António.

Bem clamou inocência o Põessajeito,
bem ameaçou que
“se eu cair, muitos cairão comigo!”,
mas de nada lhe serviu.

Este contratempo,
que noutros tempos
mão amiga não deixaria passar da secretaria do tribunal,
acabou nas mãos de juiz
com pretensões a Garzon da comarca,
que decidiu dar provimento ao processo,
de onde resultou,
oh suprema injustiça,
uma pena agravada de 10 longos anos de prisão.

Não há justiça neste mundo!


Julho 2007

ACORDAR

Abro os olhos, renitente,
acordo de um sono pesado
que cansa mais que repousa
e pinta de escuro o mundo.

Um novo dia começa, ou o velho não acabou?

Uma parte de mim quer abrir-se
ao novo dia que nasce,
outra recusa e recolhe
ao aconchego do silêncio.

Não me suporto o peso e a pele parece que dói.

Sinto o corpo a decidir,
como se vida própria tivesse,
que o dia que desponta não passa
de mais um passo vazio.

Há dias que mal começam,
começam mal.


Março 2007

PARTILHAR

Partilhar é acto de amor.
Mais que dar ou receber,
dividir tem o sabor
de dois serem um ser.

Beber da mesma taça,
ter o mesmo pensamento,
às vezes até embaraça!

Parece que nesse momento,
toda a ternura que abraça
tão profundo sentimento,
tem tal força que os enlaça
em perpétuo movimento.

Olhos nos olhos cravados,
mãos amarradas em nó,
desejo nos corpos suados,
corações fundidos num só.

Mas faz medo, também!
Deixar de ter o meu eu
para dividir com alguém
o que agora era só meu.

Vale a pena não saber
e correr o risco de dar
ainda que sem receber,
pois quem se abre para amar
abre-se também p’ra sofrer.


Janeiro 2007

INTROSPEKT REVISITADO EM 4 ACTOS

ACTO I - VERDE


Dizer que a vida é um palco
É clichê.

Talvez por isso
faça sentido,
como todos os lugares-comuns.

Este,
podia ter outro nome,
podia chamar-se eu.

Que eu sempre vivi em palco.

Vivia como os actores,
Vivendo a vida dos outros.


Novos papéis
em peças velhas,
velhos papéis
em peças novas,
mas sempre em palco.

Em diferentes tempos
e espaços,
mas sempre em palco.

No princípio era fácil.

Não havia muitas peças,
não havia muitos palcos.
Papeis pequenos,
bem definidos.
Público pouco atento,
displicente até.

A luz cegava
o aprendiz de Molière
até o pano começar a cair.


ACTO II – AZUL


Foram-se os anos,
o tempo mudou,
o espaço também.

Os papeis cresceram em número e complexidade
O público?
Ah, esse tornou-se exigente,
por vezes cruel.

Cometi alguns erros,
tive umas brancas,
ouvi palmas e assobios,
mas sobrevivi.

Ou, pelo menos, assim pensei.

Oh ingenuidade!
Não me apercebi que alguns personagens,
aqueles a quem mais me dei,
iam cobrando o seu preço.

Tarde era quando me olhei e não me vi.

Em processo continuado,
sub-reptício,
o actor esvaía-se nos personagens.

Inexoravelmente.

Até que se omitiu de vez
e a obra tomou o lugar do criador.

Assim posto, parece loucura!
Mas não é.
(pelo menos na opinião dos personagens).

Apenas se aprende a viver
sem vida própria.

Cai o pano,
contrariado.

ACTO III - VERMELHO

Mas a peça continua
mesmo com o actor fora de cena,
e outro acto se segue.

Os personagens principais,
os que mais de mim receberam,
lutam agora entre si
por mais espaço,
mais tempo,
e mais corpo do actor.

A causa comum acabou.

Um dos personagens da história,
nem sequer o de mais valor,
arroga-se agora o direito
de ocupar o lugar
que em tempo pertencera ao actor.

O que não seria uma má solução,
se este tivesse opinião,
pois poderia, assim, renascer
e tomar, enfim, a forma
de personagem principal.

“Se não te conhecesse,
diria que eras outra pessoa”!
Outro clichê!
E outra vez cheio de sentido.
O actor original saiu de cena,
perdeu existência,
deixou de ser.

Nota do Autor:
Experiências tem mostrado que transmutações de um actor com mais de três personagens tornam-se frequentemente incontroláveis e podem conduzir ao caos e à insanidade.



ACTO IV – NEGRO

Quase a cortina a correr,
resta um problema, contudo.
Os personagens que se formam
e assumem vida própria,
não têm memórias originais.

Não nasceram no tempo
do actor que lhes deu vida.

Foram criando vida roubando vida ao actor,
levando consigo pedaços desgarrados
da memória primordial.

Como, então, os personagens
se podem tornar inteiros?

Bom, memórias são histórias,
verdade?
Se são verdadeiras ou inventadas,
só é relevante para quem as viveu.

Basta repeti-las, afiná-las,
qual peça de música,
e logo elas se tornam mais reais
que as histórias originais!

Pronto, o actor morreu
dando vida aos personagens
que lhe vão prolongar a vida.

Noutro tempo e noutro espaço.

Cai o pano,
definitivo.


Janeiro 2007

A ESCOLA 151

A Escola 151 era uma escola,
igualzinha às outras escolas da época.

Tinha cheiro a escola.

Tinha paredes brancas,
telhados vermelhos e salas de aula.

Tudo a dobrar, é claro,
é bom não esquecer
que as meninas e os meninos
tinham que aprender separados.

Tinham mesmo que brincar separados,
o Muro do recreio tinha essa responsabilidade.

Guardar o recato das meninas.

Ou seria para preservar os meninos na sua masculinidade?

A Escola 151 tinha também,
como certamente todas as outras,
uma professora de aritmética,
D. Emilia,
que era dona do quadro preto.

E de um objecto a que ela chamava
instrumento pedagógico
mas que para nós era a menina-de-5-olhos porque,
qual anjo vingador,
tudo via e tudo sabia.

E que punia sem piedade
as meninas e os meninos
que pecavam nas contas de subtrair.

Ricos ou pobres,
que para o instrumento pedagógico não havia classes.

Pudera, diriam alguns, eram todos pobres!

Alguns seriam,
como na altura se dizia,
remediados,
que burguês não se podia dizer,
tinha um contexto menos avisado.

Certa tarde de Inverno,
rigoroso como os tempos de então,
a chuva foi tanta, tanta,
que o muro que guardava o recato das meninas, caiu.

Na manhã seguinte,
os meninos de um lado
e as meninas do outro lado do muro que tinha caído,
olharam-se.

E cada um ficou do seu lado
como se o muro não tivesse caído.

Não eram passados dois dias,
caíram todos os muros de todas as escolas daquele País.


Abril 2007

A COUVE PORTUGUESA

A couve, no seu pé, era linda.

Não era muito alta, que isso são as galegas.
Mais tronchuda, mais portuguesa.
Forte de pé e de peito,
coração grande e sensível.
Verde, claro, como todas as couves que se prezam.
Que ele as há vermelhas, transgénicas certamente.
Ou pior, infiltradas.
E sem flor,
nada de ornamentos de duvidoso significado.
Folha larga, aberta ao vento, suave ao toque,
sem as rugas do repolho.
Chamam-lhe Portuguesa.

Esta couve,
é bom que se diga,
não o é tanto assim.
Vá-se lá saber porquê,
no Norte,
chama-lhe Penca a minha avó.
Ainda se fosse Penca-Portuguesa,
mas não, é Penca só.

Não importa,
basta um breve olhar
para que o espírito da couve
nos encha o imaginário
dos feitos gloriosos dos nossos ancêstemos.

A nobreza do peixe cozido
cairia da cota de armas sem o suporte da couve.

E atente-se,
que o magnífico Cozido não seria à Portuguesa
sem o luso vegetal que lhe dá o nome!

E a sopa?
Que seria da sopa,
alicerce cultural da gastronomia portuguesa,
sem o aconchego da Penca?

Oh varões de Portugal,
faça-se justiça,
sublime-se a História!

Substitua-se já a esfera armilar da bandeira portuguesa
por escudo de quatro couves em campo de trigo!


Março 2007

OPRESSÃO

Subo uma escada,
vejo uma luz,
abro uma porta,
entro.

Vultos sem rosto
movem-se lentos
abrindo-se em leque,
atraindo-me para o centro de um círculo
de luzes intensas e muito brancas.

Os vultos crescem sobre mim.
Cobrem-me o céu e dão-se as mãos
fundindo-se num quase muro-prisão.

O ar que rareia
é quente e pesado.
Tem cheiro de casa fechada,
tornando o acto de respirar em esforço inaudito.

Sinto suor atrás no pescoço,
de um medo atávico de não sei quê.
O muro cresce e aperta-me o espaço.
Tenho que fugir!

Quase não consigo andar,
carrego nos ombros o peso do mundo.
Grito sem som,
arrasto-me contra o muro
que afinal não existe,
E respiro finalmente.

Abro uma porta,
desço uma escada,
vejo outra luz,
Acordo.


Janeiro 2007

CINZENTO UNIVERSAL

Branco, negro, cinzento.

Na criação foi o negro,
Da migração nasce o branco.
De um percurso lento, lento,
O que foi negro original,
Por mutação peregrina
Até ao branco final,
A diversidade congrega
Toda a paleta de tons
Da pessoa universal.

Se eu pudesse mandaria
que a cor fosse abolida,
a sombra ocultasse a luz
e a alegria proibida.

Bem melhor seria o mundo
Se a tristeza fosse lei.


O riso, de pouco siso,
Próprio de simples e tolos,
Passaria a clandestino,
Excluído e perseguido
Pela ordem cinzentista.

Pena de morte ao vermelho,
Cor das penas do inferno!

O azul que só faz lembrar
Quando o céu morre no mar.

O verde da esperança efémera
De ser castanho de inverno.

Amarelo, mal amado,
Bandeira de toda a peste.

Acabemos com a cor,
Sejamos todos iguais,
Negros, brancos, cinzentos.


Novembro 2006

quinta-feira, 7 de maio de 2009

ODE À RIMA

(estrofes I e II, cantadas pelo solista, sem rima, versos equilibrados)

Pobre, triste, abandonada,
fora de prazo e de moda,
longe dos tempos medievos
em que à mesa del Rey sentava.

Desprezada pela métrica,
antiquada, conservadora,
cinzentista ensimesmada,
sem-abrigo da poesia moderna.

(antístrofe, cantado pelo coro, com rima)

Não nos venhas assombrar!
Fora, fora, rima maldita!
deixa-nos trabalhar,
não nos compliques a escrita!

(epodos stichos, cantado pelo solista, sem rima, versos grandes e pequenos)

Guarda-te, contudo, oh rima amada e nunca esquecida,
o teu tempo voltará!
Oh sal da poesia, a quanto canto deste o ritmo e a cor,
quantas almas enlevaste
ao som de belas e tónicas homofonias.

(antístrofe final, cantado pelo coro, com rima)

Abaixo o verso livre e grosso!
Morte aos poetas traidores
e ao seu canto velho e moço!
Sem rima, são prosadores!


Janeiro 2009

DESPEDIDA

acabou,
nem antes nem depois,
acabou no momento certo,
acabou quando ele achou
no seu inescrutável conhecimento,
que tudo estava dito,
que tudo estava feito.

altura de partir
que outras terras o esperam
para além, muito para além
do minho de olhos azuis,
das áfricas negras e brancas

talvez, digo eu,
pudesse ter ficado mais tempo,
mas sei que no lugar p’ra onde vai
também há relógios por consertar
e laranjeiras por plantar.

......................................

pode ir, pai,
mas tenha cuidado, agasalhe-se
que a viagem será longa,
e as noites podem ser frias,
como em sintra, lembra-se?


Abril 2009

SE EU FOSSE....

se eu fosse deus
mandaria abrir o céu p’ra toda a gente

se eu fosse rei
decretaria que o palácio fosse a casa do povo

se eu fosse homem
pediria perdão a todas as mulheres do mundo

se eu fosse árvore
correria pelas ruas pintando as cidades de verde

se eu fosse pedra
gostaria que o meu coração sangrasse p’lo meu amor


Abril 2009

segunda-feira, 4 de maio de 2009

A PRIMEIRA VEZ QUE NASCI

a primeira vez que nasci

teve tradicional configuração,
reza a história, que eu não assisti.

gemidos de complexa composição,
de dor e de euforia,
talvez mais de libertação,
por parte da mãe-criadora.
mulher de coragem, note-se,
que a primavera da vida
já tinha passado, faz tempo.

algum provável choro,
de revolta ou de prosaica
palmada nos glúteos
do protagonista do acto
(este que vos escreve)
energicamente aplicada por diligente enfermeira.

lavado, escovado e alimentado,
deitaram-me no berço hospitalar
reservado para essas ocasiões.

fechei os olhos,
fingi que dormia e pus-me a pensar.
sim, a pensar,
não da forma despegada e preconceituosa dos adultos,
mas a pensar como só as crianças pensam.

e senti que alguma coisa não estava bem

não, não é isso,
dedos, olhos, orelhas ....
essas minudências contavam-se pelo número habitual
implantadas nos locais convencionais.

era outra coisa
assim uma sensação estranha ....
de não me sentir bem vindo.


Março 2009

MEU ABRIGO


Como é bom ser um, contigo,
sendo dois,
........................... bem separados.

Até os caminhos que sigo
me levam, determinados,
aos teus braços,
........................... meu abrigo.

Estou perto de ti, mesmo quando
o tempo nos quer separar,
quer vá pelo mar,
........................... navegando,

ou entre a poeira estelar
de asas abertas,
........................... voando.

Estende, meu amor, a mão
e agarra a minha,
........................... de amigo.

Juntos, em comunhão
partiremos,
........................... abraçados

como se fosses um, comigo,
sendo dois,
........................... bem separados.


Fevereiro 2009

O SEGREDO


não sei se deva falar
ou reprimir o segredo

guardá-lo debaixo da pele,
longe da vista e do medo
de sentir que meu coração
infiel
se vendeu por um olhar teu

sei de certeza segura
que o meu amor por ti cresceu,
cresceu desde que te vi e perdura
forte
pelo tempo que passa

fecho os olhos para que teus olhos
não vejam o que os meus olhos querem
esconder
correm mil anos e não me vem força que faça

apenas dizer que te amo


Janeiro 2009

domingo, 3 de maio de 2009

ODE À CRISE


Nasceu de berço d’ouro em Uolstrite
onde cresceu, engordou e se fez dama
educada para todo o serviço
qual dona de fino bordel,
bem longe da Meinstrite.

Comprou casa apalaçada em ofechore
de opções e futuros onde os presentes
se banhavam em taxas de juro
com espuma de édgefand
e softuére de Bangalore.

Moedas, derivativos e fundos de mágica,
imobiliário à vista e hipoteca a perder de vista
de tudo se alimentava a crise
qual doente terminal
em orgia cega e autofágica.

Ah mas a ópera bufa chegou ao grandfinal
com bolo de creme e menina de stripetise,
quiseram comer a Meinstrite
à mesa do orçamento
com ajuda governamental.

Aqui delRey, estamos perdidos, é o abismo!
Gritam banqueiros, balem gestores de fortunas.
Homens de pouca fé! digo eu,
nada como um governo social
pra salvar o capitalismo.


Novembro 2008

TATUO-ME, LOGO EXISTO


Uma tatuagem,
tanto pode ser mensagem
como simples provocação.

Pintar o próprio corpo,
à mão,
é preciso ter coragem!

Coisa velha como o mundo,
a tatuagem.

Já madame cromagnon,
com rimmel, creme e baton
aos deuses prestava homenagem.

Caçadores, predadores e matadores,
faraós, sacerdotes e vendedores,

guerreiros, marinheiros, fuzileiros,
talhantes, merceeiros e padeiros,

damas, putas, esposas e concubinas,
Antonietas, Bolenas e Josefinas,

homos, heteros e outros heróis,
Batmans, Rambos, índios e caubóis,

Luís Décimo-Quarto e Salomão,
Átila, Hitler e Napoleão,

Samurais, Incas e Maias,
gregos de tutu, escoceses de saias,

toda a gente se devia tatuar
p’ra gritar
"- Existo, sou diferente!
Sou moderno, sou p’rá frente!
Rejeito a carneiresca mesmice
Da engravatada sonsice!

Tenho um cristo no meu peito
e uma espada mesmo a jeito
que corre do ombro p’rá mão.

Junto ao umbigo um dragão!",
paroxítono como deve ser
(ainda que nada tenha a ver).

Mas já vai longa esta prosa,
ou verso, qu’é como quem diz!

Só vos quero mostrar a rosa
que um feiticeiro aprendiz
me gravou com mão airosa
mesmo na ponta do nariz!


Dezembro 2008

INDECISÃO CIRCULAR


Saber quando dizer não,
saber quando dizer sim,
sempre me fez confusão.

Podia ser assim assim,
mas isso não é opção!

Há que ser firme e escolher,
tomar a melhor decisão.

Ouvir e compreender
o que diz o coração
do fundo do seu saber.

Mas o coração e a mente,
nem sempre andam de mãos dadas,
e o coração só sente
ideias alvoroçadas
que perturbam toda a gente.

A mente, por seu lado,
é discreta e factual.
Não deixa que qualquer fado
a desvie do racional
p’ra tomar caminho errado.

Não me vou precipitar!

Pois há que ter paciência
e esperar que em meu lugar
a divina providência
apareça para ajudar.

Vamos então resumir
e tomar uma decisão.

Dizer sim quando sentir
o bater do coração,
dizer não sempre que ouvir
a voz sábia da razão.

Mas se o coração mente
e a mente não tem razão?

O melhor é simplesmente
não tomar a decisão!

Pôr um ar d’ inteligente
p’ra que o sim possa ser não
e o não... principalmente.

Mas que grande confusão!


Novembro 2006

MOMENTO


Quando o sol abre,
relutante,
caminho à noite,
e cai o vento
e se acalmam as ondas do mar,
nesse intenso momento,
fascinante,
a vida suspende-se
e o mundo pára, atento!

Um místico silêncio,
quase de oração,
cai sobre o campo,
expectante,
e as sombras tingem
de negro o chão,
e o momento, fugaz, acabou.


Novembro 2008

A RIBEIRA

Cresce, feliz, a ribeira
que o inverno fecundou,
já prenhe de águas novas.

Abrem-se os braços das margens,
Dançam as algas dos fundos,
Rolam os seixos, gaiatos.

Saltam os peixes mais alto
e brilha a prata da renda
que a espuma tece a fugir.

Corre, cega, a ribeira
p’ra morrer de amor p’lo mar.


Janeiro 2008

sábado, 2 de maio de 2009

SUPERFICIALIDADES

A história da vida soluça em ciclos.

Nem bons nem maus,
(que a história não faz apreciações qualitativas)
apenas ciclos.

Não acredito na morte definitiva
nem na transformação profunda.

Creio na mudança epidérmica
em que a pele é a crosta
e a alma é a rocha.

Se mudo de traje,
reclassifico-me.

Se tinjo o cabelo,
transmuto-me.

Se migro de bairro,
recomeço.

Se troco de emprego.
ressegmento-me.

Se me rebatizo,
renasço.

Se morro,
revivo

noutra crosta da mesma rocha.


Outubro 2008

SONETO AZUL-MAR

Não há poeta aprendiz
ou embrião de prosador
que não haja glosado o amor
de donzela ou meretriz.

Viver e amar é tormento,
quem fala de amor não diz!
Que mal, meu Deus, que eu fiz
p’ra merecer tal sofrimento!

Nos teus olhos de azul-mar,
Ai meu amor, que me afundo,
p’ra nunca mais regressar!

Quero um amor profundo,
mas quero amar sem penar.
Quero todo o amor do mundo.


Junho 2008

VIVER SEM VIVER

Viver de vida sofrida,
prefiro mil vezes morrer
que estar vivo sem viver.

Andar à sorte pela vida
das forças que se entrelaçam
no bordado onde se traçam
as linhas de um caminho
que não escolhi,
não quero!

Aceitar ser conduzido
pelo caminho vivido
de uma existência vazia,
correndo atrás de sonhos
de grandes nadas,
não quero!

Passar ao lado da vida,
andar pela sombra das coisas,
ser aquele que já não sou,
deixar tudo por fazer
no tempo desperdiçado,
Não quero!

Viver cansado da vida,
Prefiro mil vezes morrer
que estar vivo sem viver.


Março 2007

O HOMEM E O CANÁRIO

O Canário não gostava nada de ver o Homem
fechado numa gaiola.

Mesmo espaçosa,
mesmo dourada,
uma gaiola é uma gaiola.
Uma prisão.
Mesmo que tenha ruas e casas.
Mesmo que seja imaginária,
será sempre um espaço físico ou mental
bem definido e circunscrito.
Ainda que não tenha guardas.
Ainda que não tenha presos.

Quando me ofereço ao vento
e me deixo levar para onde o ar não pesa,
vejo com estes olhos de águia
– perdão, mas até o canário por vezes quer ser águia –
os Homens presos nas suas gaiolas.

Nas gaiolas dos seus conceitos e preconceitos,
das suas ganâncias e arrogâncias,
dos ódios e dos tédios,
dos seus amores e outras dores,
das tradições e mistificações.

Soubessem eles que,
quando nos afastamos suficientemente,
as diferenças entre os Homens,
que ao perto são abismos,
esbatem-se ao longe
num conjunto de figurinhas desajeitadas,
grotescas até,
esgotando-se na perseguição da sua própria cauda.

Se ao menos os Homens tivessem asas...


Outubro 2007

O MEU PAÍS À DISTÂNCIA em memória de Brel

no meu país
existiu um outro país que morreu.

na terra que renasceu,
uma nova esperança se abriu.

o tempo passou a fugir.

do sonho que feneceu no velho país que é o meu,
fica a história por julgar
e a promessa por cumprir.

no novo país ainda vejo pessoas que são donas
de pessoas que são coisas,

onde os novos guardam velhos em casas
de esperar a morte.

onde há gente que trata a gente
como se gente não fosse.

onde há mulheres de comprar e vender,
servindo quem as devia servir.

fica a esperança prometida para o novo país
que nascer.

oprime o meu peito uma ânsia de ser público e actor,
de voltar a ver a flor
no meu país à distância.


Janeiro 2007

A UM VELHO

tema triste, este
da idade
ora passadista e de falsa exaltação,
de choro escondido
e solidão
ou lamentativo,
de apelo à piedade

ser velho não tem qualquer graça

ainda que o contrário se diga
velho é escrivaninha antiga,
livro da memória
do tempo que passa

no jornal da manhã,
a necrologia foi elevada
a leitura compulsiva,
onde se procura
um amigo que se quer não encontrar

as pernas já reclamam do carrego do corpo
e os olhos marejam-se do esforço
de te querer guardar para sempre

ser velho não tem qualquer graça

odeio ouvir dizer
- já viveu o suficiente -!
que sabem os vivos disso?

sinto que o fim me abraça
e sei que não tenho medo

mesmo quando é desejada
ainda que há muito esperada
a morte vem sempre cedo

morrer é o menos!
ser velho, é que não tem qualquer graça


Fevereiro 2009

O CAMALEÃO

Teria, se bem me lembro,
os meus quinze anos de idade,
sei que foi em Setembro,
antes de voltar à cidade
e no fim das férias de Verão.

No bosque da cercania
cacei um camaleão.

Com um brilho de alegria
levei-o, ufano, para casa
numa caixa de sapatos,
pensando fritá-lo na brasa
ou partilhá-lo com os gatos.

Apresentei-o à família:
“eis um camaleão comum,
de sua classe reptilia”.

E para quebrar o jejum
dei-lhe uma mosca ao jantar
e uma melga à sobremesa.

Logo o mandei deitar
na caixinha azul turqueza.

Vinte tal anos vivemos,
eu mais o camaleão.

Nunca uma briga tivemos,
nem uma simples discussão.

Não faria palhaçadas
nem de falar era capaz,
mas era fiel como poucos,
e, à sua maneira, sagaz.

O camaleão, é sabido,
tem a singular competência
de através de um colorido
escolhido com sapiência,
mutar-se à vontade do freguês,
ora ferrenho de esquerda
ora naturalmente burguês,
de falsa inteligência lerda
ao mais idiota doutor.

Foi então que de repente
senti em mim um fulgor
e me vi, resplandecente,
de uma forma assaz irónica,
copiando os instrumentos
da técnica camaleónica
e dos seus conhecimentos!

Treinei, estudei à força plena
com o ardor de um condenado,
mas sei que valeu a pena,
hoje, sou Ministro de Estado!


Janeiro 2009

NA LUA NÃO HÁ FLORES

Dizem que o amor floresce ao luar,
mas na Lua não há flores.

O que importa é amar
sem pensar sem pensar
nas Luas de todas as cores.

Não há amor a dois,
Há amor.
Não se ama outro,
Ama-se.

Amor não é plural
começa e acaba em mim.

O amor não tem objecto,
não tem princípio nem fim.

Amar é preciso, simplesmente.

Sem sizo,
sem deve nem haver
nem conta nem medida
nem resultado final.

O amor desponta
na ponta dos dedos
que se tocam para o bem e para o mal,
e nos olhos que focam outros olhos.

Não, não me falem de paixão!
Isso não é amor
é aturdimento
perturbação dos sentidos
não dura mais que um momento.

Falem do amor constante
que nasce e renasce,
do profundo sentimento
de ser amado e amante.


Dezembro 2007

sexta-feira, 1 de maio de 2009

POEMA CURTO A UM ANÃO

Um homem baixo é um anão.
Ah não!

Um anão é um homem alto
que uma doença torna baixo, assim.
Ah sim!

Não fora essa a questão,
O anão não seria, não, anão.
Talvez um ser afim.
Ah!
Fim.


Novembro 2007

TEMPOS E MEIOS TEMPOS

Enquanto o amanhâ não chega
leio o jornal desportivo.

Não há propriamente um motivo
para fazer massagens aos pés
ou antecipar o futuro.

Na busca incessante do amanhâ,
consumo energia que deveria conservar
para enfrentar o hoje,
que passa quando chega
e nesse momento já não é.

O mais curioso é que,
vivendo o presente,
olho para o futuro,
mal notando que o futuro
é apenas o presente adiado
que chegará a seu tempo.

E o tempo que passou?

Ah, não passou, claro,
apenas mudou de lugar,
afastou-se quando o presente chegou.

E todos os presentes se mantêm presentes,
no passado.

Não apagados, apenas arrumados.

É importante que o passado
seja bem arrumado.

Cronológica,
alfabética ou
tematicamente,
mas bem arrumado.

Um passado mal arrumado
teima em voltar ao presente.


Agosto 2008

INTROSPEKT

Sempre quis ser actor.

Mas não queria,
verdadeiramente.

O que me atraía
era a ideia de o ser.

Não era o palco,
as luzes,
as pessoas,
nem sequer o reconhecimento.

O que me atraía,
verdadeiramente,
era poder não ser eu,
ser outro.

Era a máscara,
a outra vida,
de outro que não tivesse que ser eu,
sempre.

A fadiga de ser eu,
e o desejo de não ser.
Mas quero sempre voltar
Ao eu que me penso ser.

Não vivo bem comigo.
Talvez.

Mas o que me parece,
verdadeiramente,
é que o eu que me deram
não chega.

Tenho que ser mais do que um.
(embora por vezes queira ser nenhum.)

Sempre quis ser actor.


Outubro 2006

FECHO OS OLHOS E VEJO

Os meus olhos
são a métrica dos horizontes-limite.

Abro os olhos
e mais não enxergo que a janela do vizinho.

Fecho os olhos
e distingo o topo do monte fuji.

Abro os olhos
e não vejo mais que o meu corpo distorcido no espelho.

Fecho os olhos
e viajo pela poeira de memórias recusadas.

Abro os olhos
e perco de vista o mundo que vejo com os olhos fechados.

Fecho os olhos e vejo.


Julho 2008

O MEU BAIRRO (em modo rap)

no bairro onde moro
tem muita riqueza
gente que labuta
gente que se oculta
com vergonha
d’existir

no bairro onde moro
tem muita vergonha
gente que se aluga
gente que se vende
e se arrepende
d’assistir, de consumir ...... sem reagir

gente que se aluga
gente que se vende
e se arrepende
d’assistir, de consumir ...... sem reagir


o vento é prenúncio da chuva que arrasta o bairro
o menino é promessa do homem que mata a terra
escuta, menino, escuta o grito de torturar e destruir


temos que mudar,
temos que vencer
temos qu’expulsar
a gente que só quer
explorar
e escravizar e roubar, .....e corromper

temos qu’expulsar
a gente que só quer
explorar
e escravizar e roubar, .....e corromper


não quero ir embora
não quero desistir
do direito a sonhar
do direito a viver
e sorrir
e amar e acreditar, ...... sem ceder

não quero desistir
do direito a viver
e sorrir
e amar e acreditar, ...... sem ceder


o vento é prenúncio da chuva que lava o bairro
o menino é promessa do homem que lavra a terra
escuta, menino, escuta o grito de lutar e resistir


Não quero ir embora
Do bairro onde moro
Não quero desistir .....


Fevereiro 2009