quarta-feira, 19 de maio de 2010

OS SENTIDOS

O homem perderá o atávico medo
da sua insuportável pequenez
Tratará como pares os deuses maiores
e beberá vinho com os fantasmas
que habitam o solstício de verão
Receberá nas planícies de trigo
faunos de casco rachado
que dançarão de roda
músicas de todas as cores
com virgens de verdes hímens
………………………………………....
Se ouvir para além da palavra dita
e ler o silêncio
Se olhar para lá do horizonte mítico
e escrever no mar
Se tocar na alma com os dedos
e libertar o espírito
Se sentir o aroma da verdade
e cultivar a utopia
Se tomar o gosto do pensamento
e for livre e crítico
……………………………………….
se viver, enfim,
sentindo para além dos sentidos.

Maio 2010

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A NÚVEM

o céu de S. Paulo
naquela tarde comum
era brutalmente azul
de um azul impositivo, sem mácula

eis que surge uma nuvem,
pequena, mas densa e forte,
com bochechas vermelhuscas
de quem chegou apressada,
que deslizou como deslizam as nuvens
e se sentou no meio do céu.

e naquela tarde comum
maculou , atrevida,
a tela azul do céu de S. Paulo

O BARCO DE ABRIL

Aparelhar o barco no berço,
Arriar a vela uterina,
Largar os cabos umbilicais,
Subir na sela, montar na vida
e partir.

Tropeçar e cair, tropeçar sem cair,
Marejar os olhos,
Contornar os escolhos,
Sorrir com a dor do amor
e amar

Marcar o rumo, tocar em frente,
Dentes cerrados na estrada
Sem esquecer, sem temer,
Seguir a estrela de Abril
e viver


(abril de 2010, 36 anos depois)

terça-feira, 6 de abril de 2010

EXERCÍCIO IMAGINÁRIO

(em verso bárbaro - 13 ou mais sílabas)

Amanhã vou passear um cão imaginário
Regar as flores dos vasos da sala virtual
Ouvir os sinos de inexistente campanário
Conversar com os meus contactos do portal.

Pela tarde tardezinha estarei no feicebuke
Colhendo rosas bacará no farmevile
Daí vou ao museu dos coches no auteluke
E depois noite de poker em Santiago do Chile

Acordo ao som dos tubular beles no emepêtrês
E vejo os imeiles antes de ir para a escola
Preparo-me p’ra seguir as lições de inglês
Depois de carregar o Fifa 2000 na consola

A minha mente andava perdida, reconheço,
Já confundia o mundo real com o virtual
Espero, de qualquer forma, com muito apreço,
Que o Benfica ganhe o campeonato nacional!

Abril 2010

sábado, 3 de abril de 2010

TANTO VERDE

Tanto verde
nas serras de Minas Gerais

tanto verde
que pintaria o mundo de esperança
e cobriria de oásis
todos os desertos da terra

tanto verde
que um dia a alma dos homens
voltará, arrependida,
ao brilho dos mil verdes
das serras de Minas Gerais

Abril 2010

domingo, 28 de março de 2010

APOLOGIA DA FORMA

Acompanho com curiosidade,
algo mórbida, confesso,
um fenómeno marcante dos tempos atuais,
o primado da forma sobre o conteúdo.

Uma ideia, qualquer ideia,
vale pela qualidade da sua expressão,
independentemente do seu conteúdo.

Uma má ideia, cuidadosamente vestida,
cosmetizada e bem vendida,
passa a brilhante referência intelectual

Uma boa ideia, pobremente apresentada,
torna-se fugaz , incorpórea,
e morre no pó dos arquivos descontinuados.

A arte de dourar um conteúdo
medíocre na sua origem,
um político, um sentimento
ou um simples prato de comida,
por forma a que o ávido consumidor
o veja como um ideal de representação
ou uma refinada essencialidade,
é, sem sombra de dúvida,
o mais fiel retrato da fragilidade
e do nanismo espiritual do homem moderno.

Tudo se toma pelo seu valor facial,
não cabendo à dimensão intrínseca das coisas
mais que papel menor ou meramente decorativo
no teatro da vida moderna.

Vivem-se tempos de ser o que se parece
mesmo que se pareça o que se não é.

Ganhou a mulher de César
que hoje lhe basta parecer
sem ter o trabalho de ser.

De tal forma que a forma,
antes chamada acessório,
ganhou vida própria e substantivou-se,
defenestrando de vez o conteúdo.

Março 2010

quarta-feira, 24 de março de 2010

O VINHO - Quadras ao sabor popular

Branco, tinto ou rosé,
vinho velho, vinho novo,
pleno de corpo e bouquet,
és a alma do meu povo.

És o anjo inspirador
do poeta ou trovador
e lhe faz corar o rosto
de escarlate, como o mosto.

O vinho faz-me cantar,
faz-me chorar e sorrir,
faz a minh’alma florir
e o pensamento voar.

Com borbulhas ou sem elas,
o vinho é como o amor,
bebe-se à luz das velas
e desde manhã ao sol pôr.

O vinho solta-me a língua
e alegra-me o coração,
nunca morrerei à míngua
se tiver um copo na mão.

Mas é bom nunca esquecer,
jamais a razão perder
que a mente fica confusa!
Se vai beber … não conduza!

Março 2010

segunda-feira, 22 de março de 2010

REFLEXÕES DE EPAMINONDAS

A GRUTA
I
epaminondas terminou a obra
a que dedicara os melhores anos da sua vida,
a reconstrução de Tebas.
decidiu então recolheu-se a uma gruta,
espartana como convém, para meditar,
jejuar de guerras e outros prazeres carnais
e fazer contas ao passado com olhos de presente.
II
epaminondas sabia que esse processo
de contabilidade psicanalítica
não passaria de exercício aritmético viciado
em que o resultado era previamente conhecido.
pois não é, cada um de nós, no presente,
a soma algébrica dos deves e dos haveres
acumulados ao longo dos tempos passados?
III
epaminondas sabia, pois era homem
de extenso saber de experiências feito,
que ponderada a importância de cada ato
ou desato mais ou menos intencional,
por coeficiente que refletisse o seu peso
no desenvolvimento dos presentes futuros,
depois somasse e subtraísse as variáveis,
inapelavelmente surgiria o rosto familiar
do personagem que integra o eu-atual de cada um.

A QUESTÃO
IV
epaminondas sabia que o verbo inicial
e detonador de todo o pensamento,
teria que sair da fatal questão:
“ah se eu pudesse mudar o passado…..”
e que afirmariam uns:
“eu não mudaria uma linha!”
e que clamariam outros:
“sim, há coisas que …. talvez…”
onde cada posição denuncia
uma forma diferente de cada um atravessar a vida
e de se relacionar dentro do caldo cultural dos humanos.
V
epaminondas sabia ainda, por simples empirismo,
que os deuses não tinham criado os homens iguais,
fosse por lamentável e imperdoável incúria divina,
fosse porque os deuses já teriam antecipado que
a criação do homem não seria obra prima
nem digna sequer de menção honrosa.
em qualquer dos casos, tudo deixava adivinhar,
como aliás os testamentos da história
(os velhos, os novos ou os contemporâneos)
se encarregaram de demonstrar à exaustão,
que a criação do homem seria um ato falhado dos deuses.
VI
epaminondas inferiu assim, logicamente,
que dessa inconsistência do barro genético
resultaria que nem todos os homens aprenderiam
à mesma velocidade, havendo mesmo
muitos a quem essa capacidade seria negada.

APRENDIZAGEM
VII
epaminondas não sabia, nem poderia sabê-lo,
pois os deuses mantinham o poder de adivinhação
restrito aos limites olímpicos e a uns poucos oráculos,
que os homens que não aprendem
se multiplicariam mais depressa que os outros
e que, assim, em escassos séculos,
a terra seria deles, dos homens que não aprendem!
VIII
dos homens que aprendiam,
reza a tradição popular
que se agregaram nas academias
e outras instituições de diversão e recreio
onde afincadamente produziam saber
que a ninguém interessava nem ninguém entendia,
enquanto os homens que não aprendiam
cogitavam na melhor e mais expedita forma
de repetir os erros do passado,
entronizando-se na passerelle das paradas militares,
eternizando-se em bustos de mármore
ou cunhando-se em anversos de moeda corrente.
IX
epaminondas, fatigado de meditar, adormeceu,
e passaram, assim, quase três mil anos
em que o tebano general e pensador,
não tendo pedido a ninguém que o acordasse
(ninguém se atreveria a fazê-lo sem expressa ordem!),
mais não fez que dormir o sono justo dos heróis.

ATO FALHADO
X
nada de mais entretanto acontecera.
os piores receios dos deuses confirmaram-se,
ou não fossem eles deuses.
os homens nunca mais se recompuseram
dos maus tratos de que foram vítimas
por parte do pai criador,
particularmente a expulsão da casa paterna
como castigo desmesurado por mero pecadilho
de juventude entregue a si própria.
XI
epaminondas acordou finalmente
do reparador sono de quase três milénios.
tomou um duche rápido e encomendou
um croissant, um sumo de laranja
e um café curto bem forte.
XII
ligou o laptop e conectou-se em banda larga,
correu os olhos pelos emails
e concentrou-se na leitura do Financial Times.
crises financeiras, greves e despedimentos,
tremor de terra aqui, inundação ali,
incontáveis conflitos armados de dimensões
e violência para todos os gostos e paladares,
enfim, o trivial, nada, afinal, que o grego não tivesse
já visto e revisto ao longo da sua vetusta idade.

O CIRCO
XIII
uma coisa, contudo, deixou epaminondas perplexo,
se não mortalmente desiludido!
mesmo sabendo ele que os homens não aprendem,
esperaria o general que o sistema de
convivência que tinha sido inventado
no tempo da sua juventude e a que os seus
compatriotas chamaram democracia
se tivesse espalhado pelas terras do planeta
e fosse prática comum entre os homens.
XIV
passados três mil anos, o sistema
era totalmente desconhecido
da larga maior parte dos poderes vigentes
ou, na melhor das hipóteses,
permanecia em fase experimental
nos raros locais onde era utilizado.

EPÍLOGO
XV
O choque foi demasiado grande
e epaminondas entrou em depressão profunda.
fez terapia de grupo durante 3 anos,
assumiu a sua secreta filiação maçónica
e entrou para a ordem dos monges de Cister,
tendo dedicado o resto da sua vida
ao cultivo de vegetais hidropónicos
e à produção de geleias e compotas.

O tempo envelhece e os homens não aprendem.


Março 2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

FUGA BURLESCA

Foge, meu amor, foge
que te querem dominar

Não deixes, meu amor, não deixes
que te cortem as asas
para que não possas voar

Foge , meu amor, foge
que te querem possuir

Não deixes, meu amor, não deixes
que te ponham grilhetas d’ouro
com que te querem prender

Foge, meu amor, foge
que te querem corromper

Não deixes, meu amor, não deixes
que te ofereçam palácios reais
onde te querem fechar

Foge , meu amor, foge
que te querem amortalhar

Espera por mim, meu amor,
que da outra me vou separar,
prometo que a mato sem dor
para contigo me casar!

Tenho banca no Bulhão
e um T3 na Boavista
onde vais ganhar o pão
trabalhando de massagista.

Assim acaba esta história
Que começou trovadoresca,
Sem mistério nem glória
Em farsa, feia e burlesca.

Fevereiro 2010

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

PEÇO A PALAVRA

Se o mundo me desse a palavra,
que palavra teria eu para dizer ao mundo?

Falaria sobre o passado,
sublinhando as lições da história?

Falaria sobre o presente,
exaltando as conquistas da humanidade?

Ou falaria sobre o futuro,
prometendo sonhos e garantindo esperanças?

Diria a doce mentira que querem dita
ou a verdade que se evita porque morde
as consciências de todos e cada um?

Poderia dizer um poema que falasse de amor,
construir um Peter Pan em papier-maché,
cantar uma canção da Piaf
ou dançar aos saltinhos como os irlandeses….

Mas não, acho que não diria nada.

Assim como nunca nada aprendi
de tudo o que o mundo me quis ensinar,
como posso pretender ensinar ao mundo
tudo o que nunca quis aprender?

Não, acho que não diria nada.


Fevereiro 2010

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

HISTÓRIAS

as histórias sempre me fascinaram!

os heróis e os vilões,
os príncipes e os ladrões,
sempre arrumados em parelhas dicotómicas,
cavalgavam as páginas dos meus livros e
voavam no meu imaginário adolescente.

navegava com eles p’los mares sem fundo,
dava três voltas ao mundo
montado em imortal pégaso
de mão dada com uma tágide.

abriam-se dimensões paralelas
de universos previsíveis
onde as inseguranças juvenis
se ancoravam no porto seguro
da inevitável vitória final
do bem sobre o mal.

mas nem sempre o herói da história
era o meu herói!
quantas vezes avisei o índio
que se aproximava o caubói!
quantas vezes o meu coração
sofria, solidário, pelo dragão!

quantas vezes cruzei a salto
as fronteiras da história…


Janeiro 2010

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

A FORMIGA

amanhã vou ser grande
como um homem.
não, amanhã vou ser grande
como uma formiga,
porque a formiga é maior que o homem
toda a gente sabe
…………………………………………
o homem é singular
a formiga é plural
…………………………………………
o homem é um todo arrogante
que se move pisando os homens,
na sua unidade.
a formiga é uma humilde parte de um todo
que extrai a força vital
da sua complementaridade.
…………………………………………
o homem inventou um deus
para sobreviver pouco mais que um momento.
a formiga fez-se em deus
para ser formiga para sempre

Janeiro 2010

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

EXERCÍCIOS em redondilha maior e rima emparelhada

“Que tarde amena, Filomena!”
“Mesmo bacana, Juliana!”
“Vamos ao jardim, Serafim?”
“Estamos nessa, Vanessa!”

E lá foram, esfuziantes,
os quatro amigos de infância,
de olhos risonhos, brilhantes,
cantando em consonância.

Estavam chegando ao portão
quando passa, ensimesmado,
um outro amigo, o João,
em passo assaz estugado.

“Olá João, vais com pressa?”
logo lhe grita a Vanessa,

“Sim, vou buscar a Juana,
que chegou agora de Havana!”

“Vão ter conosco ao jardim!”,
acrescenta o Serafim,
“vamos cantar e dançar
até o dia raiar”!

E dançaram co’as formigas,
os amigos e as amigas,
desfizeram-se dos trapos
e beijaram rãs e sapos.

Vestiram-se de mil cores
beberam com os beija-flores
néctar e água de rosas
das orquídeas e mimosas.

E p’lo cálice do jacinto
foram três garrafas de tinto
que os deixou atordoados,
e alegres, mas ensonados.

Acenderam uma fogueira
debaixo da amendoeira
e dormiram abraçados.

Eram três dias passados
quando os olhos, ramelosos,
se abriram, esperançosos,
para um dia auspicioso.

Logo o Serafim, ranhoso,
anuncia em tom estridente:
“Tenho que ferrar o dente,
estou com fome, pessoal!”

“E o anticoncepcional?
Ai meu Deus que esqueci!”
chora a Juana, fora de si.

“Vamos mas é ao almoço,
mesmo que seja um tremoço!”
berra o João, esganiçado,
“quero um queijo amanteigado,
filetes de carapau,
um pastel de bacalhau
e duas tacinhas de branco!”

“Aproveito e vou ao Banco
levantar algum dinheiro
para ir ao cabeleireiro,”
diz o Serafim, gaiteiro.

A Filomena, zangada,
vai p’ra cima da bancada,
e grita em tom de falsete:
“Roubaram-me o sabonete!
preciso de me lavar,
qu’inda tenho qu’ir trabalhar
até à nove da noite!”

“Precisas de um bom açoite,
Só agora te lembraste
do que bebeste e cantaste!”
acusou a Filomena
sem qualquer sombra de pena!

Após longa despedida
lá foram todos à vida
de semblante acabrunhado,
cada qual para seu lado.

E assim acaba esta história
sem qualquer dedicatória,
junto apenas um abraço
bem sentido, d’amigalhaço,
e mais um queijo da serra
e saudades lá da terra.

Janeiro 2010